O homem que via o futuro

* Daniel Medeiros

Pouco depois do incรชndio do Reichstag, ele conseguiu autorizaรงรฃo para embarcar em um voo com Goebbels e Hitler. Conversou com o Ministro da Propaganda e reparou como Hitler estudava obsessivamente um mapa europeu. Ouvindo a conversa entre os dois, ficou claro para ele que Hitler nรฃo seria apenas um ventrรญloquo dos interesses dos grandes empresรกrios alemรฃes. O chanceler tinha um delรญrio pessoal para erguer, um projeto de grandezas e profundidades nunca imaginado: o Reich de mil anos. Doze anos depois, quando deu um tiro na cabeรงa, a paisagem era outra. Mas isso nรณs jรก sabemos e agora nos perguntamos como ninguรฉm tentou evitรก-lo antes. Pois รฉ: o passado, que era o futuro naquele ano de 1933, naquele voo, passou pelos olhos do jovem jornalista de 27 anos, Gareth Jones. Mas quando ele alertou a todos, ninguรฉm acreditou nele. O delรญrio parecia ser seu e nรฃo do senhor Hitler. Afinal, como duvidar de um homem que prometia salvar a economia da Alemanha?

No mesmo ano, ele foi para Moscou e conseguiu, fugindo da vigilรขncia soviรฉtica, visitar os campos coletivizados na Ucrรขnia. De lรก vinham os grรฃos que o governo trocava por libras e dรณlares para financiar a sua indรบstria. Stalin fazia uma propaganda imensa do sucesso da revoluรงรฃo e buscava aproximar-se do Ocidente, oferecendo oportunidades de negรณcios para a transformaรงรฃo de um paรญs servil em moderna naรงรฃo. Mas o que Gareth viu, longe da Moscou da propaganda, foi misรฉria, fome, mortes. A coletivizaรงรฃo forรงada promovida por Stalin transformou milhรตes de pessoas em escravas de um projeto de Revoluรงรฃo Industrial ร  curto prazo, com um custo maior do que a Inglaterra levou quase um sรฉculo para promover. Mas Stalin tinha pressa. E, como o ditador mesmo costumava dizer: โ€œuma morte รฉ uma tragรฉdia; um milhรฃo de mortes, uma estatรญstica.โ€

Mais uma vez, Gareth denunciou e buscou mostrar ao mundo que o que acontecia na URSS era terrรญvel e nรฃo podia ser apoiado por ninguรฉm. Mas, outra vez, quase ninguรฉm se importou com o que ele disse. Pelo contrรกrio, os EUA do senhor Roosevelt reconheceram diplomaticamente a URSS e mandaram para lรก seus รกvidos empreendedores, em busca de recuperarem o dinheiro perdido pela depressรฃo do pรณs 1929. O mesmo ocorreu com a Alemanha. Quem se importava com aqueles discursos exagerados, com aquelas promessas macabras, com as ameaรงas aos judeus, ciganos, eslavos, homossexuais, pessoas com deficiรชncia? A economia ia bem, a Alemanha seria grande outra vez. Hitler era sรณ um falastrรฃo. Se ele saรญsse do prumo, bastava tirรก-lo do poder.

Gareth morreu em 1935, assassinado, provavelmente, por ordens de Moscou, durante uma reportagem na Mongรณlia. Morreu antes de a visรฃo do presente que ele tentou difundir – como o homem que deixa a caverna e depois retorna porque acha que precisa compartilhar o que viu com os outros homens acorrentados pela rotina das sombras projetadas na parede – tornasse-se evidente para todos. Mas era tarde. Sempre รฉ tarde.

O futuro, quando se torna presente, ilumina os espectros daqueles que se anteciparam e alertaram e que, quase sempre, foram desacreditados. ร‰ uma sina, a de estarmos mergulhados pelo presente que escolhemos ter e rejeitarmos visรตes perturbadoras como se fossem impossรญveis. Atรฉ que se tornam a paisagem ao redor de todos nรณs.

Ainda hoje, o Holodomor, nome que expressa o Shoah ucraniano nos anos de 1932 e 1933, รฉ pouco conhecido e ainda contestado por muitos. ร‰ que hรก muitos tempos presentes que sรฃo tรฃo doces de se imaginar viver que nรฃo aceitamos a ideia de que eles nunca foram assim em tempo algum. E insistimos em citรก-los, nostalgicamente, como se estivรฉssemos sob o efeito de uma droga alucinรณgena.

ร‰ como lembrar dos anos setenta no Brasil como um perรญodo de paz e prosperidade. ร‰ como, provavelmente, em algum momento do futuro, muitos dirรฃo que vivemos, nesses dias de penumbra e tristeza, um tempo de ordem e de progresso. E, mais uma vez, serรฃo as pessoas como Gareth que nos lembrarรฃo o que o presente realmente foi, quando jรก for um passado distante e impossรญvel de salvar.

 

* Daniel Medeiros รฉ doutor em Educaรงรฃo Histรณrica e professor no Curso Positivo.
danielmedeiros.articulista@gmail.com
@profdanielmedeirosย 

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