*Daniel Medeiros
Quando eu nasci, a expectativa de vida no Brasil era de pouco mais de 50 anos. Ou seja, se eu tivesse a idade que eu tenho agora naquele tempo eu jรก seria considerado velhรญssimo. No entanto, as melhorias no padrรฃo mรฉdio de saรบde, habitaรงรฃo, trabalho e tecnologia fazem de mim, agora, um homem de meia idade, com pelo menos mais vinte ou vinte e cinco anos de vida ativa, antes de entrar na categoria dos realmente velhos. Ou seja, ganhei um tempo enorme para saber o que ainda fazer da vida.
Sempre quis ser velho, porque acho ser velho algo muito digno, mas a modernidade pregou-me essa peรงa e, por isso, quando digo hoje para as pessoas que estou velho – porque รฉ bacana e porque sinto-me alegremente assim, no meu terceiro cavalo – recebo reprimendas com olhares de quem nรฃo estรก brincando, como se eu tivesse dito algo imoral ou tivesse comido algo que engorda muito. A velhice estรก se tornando uma espรฉcie de tabu, como โaquela doenรงaโ ou โaquele problema na famรญlia”. Uma demonstraรงรฃo disso foi a polรชmica em torno da campanha feita pela ONG Relate, no Reino Unido, sobre a intimidade sexual na velhice, sobre a continuaรงรฃo da atraรงรฃo pelo outro na velhice, sobre a permanรชncia do desejo pelo corpo do outro na velhice, ainda que esse corpo esteja em fase de descoberta da inevitรกvel forรงa da gravidade e as reservas de colรกgeno jรก nรฃo sejam suficientes para encarar essa briga. Aliรกs, como eu sempre considerei desde muito jovem, o desejo nรฃo estรก na percepรงรฃo do olhar, mas na reflexรฃo da mente (obrigado, John Locke) e em como ela processa de maneira complexa o conjunto de informaรงรตes que vรชm juntas com a imagem desse corpo. Coisas que a idade normalmente ensina. E, ร s vezes, nรฃo.
A ideia contemporรขnea sobre a velhice tem deixado os velhos em uma situaรงรฃo de risco. Os mais jovens, de uma maneira geral, creem que a vitalidade fรญsica e a longa estrada de tempo que supostamente tรชm ร frente, dรก a eles uma primazia em termos de cidadania e, por isso, sentem-se incomodados com os mais velhos que estรฃo em suposta โvantagem legal”, na fila do supermercado, no aeroporto ou mesmo em situaรงรตes cotidianas, quando, por exemplo, demoram para entrar no carro do Uber. Da mesma forma, acham “cute” quando veem duas pessoas com bastante idade namorando ou acham “terrific” quando uma delas faz alguma atividade – normalmente fรญsica – como danรงar, pular, correr, carregar coisas – que nรฃo poderiam estar fazendo, afinal sรฃo velhos ou velhas.
Penso, entรฃo, nas pessoas jovens que ficaram velhas rapidamente, passando a jato pela vida e entรฃo morreram gloriosamente. A primeira imagem que me vem ร cabeรงa รฉ Noel Rosa, morto aos 26 anos, depois de ter revolucionado o samba brasileiro e composto mais de 250ย canรงรตes. E tambรฉm Cazuza, aos 32 anos, tendo realizado uma vida artรญstica completa e marcado para sempre a mรบsica brasileira. Como tambรฉm Nara Leรฃo, morta aos 46, ou Raul Seixas, aos 44. E o que dizer de Torquato Neto, que achou que jรก tinha vivido o bastante aos 28 anos? Ou Glauber Rocha, que completou seu ciclo genial e inesquecรญvel aos 42?
Penso tambรฉm nas pessoas velhas que nos encantam e nos fazem perder o fรดlego com tanto talento – e que os muitos jovens ressentidos insistem em dizer que sรฃo pessoas com โalma jovemโ- como Fernanda Montenegro ou Ary Fontoura, ou Habermas ou Edgar Morin, ou Anthony Hopkins ou, bom, a ideia รฉ essa e creio que jรก estรก bem exemplificada.
Quando nasci, as pessoas morriam cedo porque o paรญs nรฃo era capaz de garantir um tempo de existรชncia mais longo para elas, embora viver muitos anos ou poucos anos nรฃo signifique realmente viver bem. Hoje, depois de alguns governos que melhoraram as condiรงรตes gerais do paรญs – enquanto outros fazem um pouco de tudo para reverter essas conquistas – as pessoasย existem por mais tempo. Com a Medicina avanรงando, as prรณximas geraรงรตes chegarรฃo aos cem anos com facilidade. ร muito tempo para existir. E esse parece ser o grande xis da questรฃo: existir nรฃo รฉ exatamente igual a viver. Porque podemos encerrar o acerto com a nossa biografia aos 20, aos 40, aos 60 ou aos 104, como Oscar Niemeyer, tendo vivido muito ou existido muito. Viver รฉ fazer desse tempo por aqui um testemunho รบtil e/ou fascinante da nossa existรชncia, como pessoas de todas as idades – viva Greta Thunberg! – fazem, diariamente.ย
Gosto da ideia de ser velho, porque vivi intensamente minha juventude e minha vida adulta, balanรงando em meio ร s cordas, umasย tensas, outrasย frouxas das minhas decisรตes, gritando sempre ao contra regra: โsem rede de proteรงรฃo!โ. Agora, a calma que a memรณria desses tempos agitados e a certeza de que eles jรก ocorreram, enchem-me de vitalidade para um viver mais epicurista, de prazer com discernimento, de desejos moderados. Como um livro que nos envolve e acaricia, mas que sabemos que chegarรก ร รบltima pรกgina. Seja a Metamorfose de Kafka ou as Putas Tristes de Garcia Marquez; seja um grande romance de Pasternak ou Lรบcio Cardoso; seja Ratos e Homens ou Vinhas da Ira, o importante รฉ que, no fim, eu tenha saboreado cada pรกgina e, entรฃo, feche o livro e repouse minha cabeรงa na poltrona e (en)cerre os olhos para estender o prazer da jornada para o infinito. E alรฉm.
*Daniel Medeiros รฉ doutor em Educaรงรฃo Histรณrica e professor no Curso Positivo.
danielmedeiros.articulista@gmail.com
@profdanielmedeiros
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