Por Wanda Camargo
Em muitas de nossas escolas quando se fala sobre povos que ocupavam o território brasileiro antes da chegada dos portugueses, o tom sempre é mais de curiosidade e condescendência, seus comportamentos são relatados sob o ponto de vista dos europeus, como exóticos, sua religião e hábitos alimentares descritos com ligeireza, e a contribuição cultural para a nossa civilização reduzida a algumas palavras incorporadas ao vocabulário brasileiro.
O fato de não terem se deixado aprisionar para o trabalho escravo foi muitas vezes relatado como “preguiça endêmica”, e assim terem provocado a “necessidade” de importação de escravizados da África.
Além de indolentes, pouco espertos – quando se entende esperteza como capacidade de mentir, de trapacear, de tirar vantagem –, cheios de dificuldades para entender os meandros da religião recém chegada, com suas tragédias e pouca amorosidade. As roupas pesadas nas regiões tropicais, o desprezo pelo corpo e sobrevalorização do espírito, as tiranias sobre os sentidos, a falta de senso comunitário, o egoísmo desenfreado e o acúmulo de dinheiro sobrepujando a alegria de viver, o afeto pela família e as atividades comunitárias, tudo isso colaborou para a estranheza de parte a parte e a convicção de que eram seres “sem alma”, passiveis de destruição.
Para acultura-los, a bebida e a violência foram essenciais, e fomos prendendo os remanescentes em áreas cada vez menores, alterando portanto de forma radical suas tradições e visões de mundo, desde os bandeirantes caçadores de outros índios e negros, até os humilhados de nossas cidades.
A atual condescendência para com garimpeiros em suas áreas, o desmonte radical das poucas entidades voltadas à sua proteção, a permissão de catequizadores de diversas extrações em suas terras, destruindo o meio ambiente, alterando ainda mais sua cosmogonia e reduzindo-os à obediência servil, o descaso durante a pandemia que tem tomado proporções de genocídio, tudo tem mostrado que regredimos muito nos últimos meses na compreensão e amparo a estas comunidades. Enquanto no planeta aumenta a percepção de que os verdadeiros donos da terra devem ser resguardado de posseiros e milicianos, pouco atuamos em defesa e preservação do patrimônio cultural, além de assistir indiferentes ao desaparecimento de seus idiomas e modos de vida.
Nos Estados Unidos, o presidente Joe Biden, ao assumir seu cargo, nomeou a deputada democrata Deb Haaland para ocupar o cargo de Secretária do Interior, a primeira mulher de origem indígena a ocupar o posto; ela responderá por áreas ocupadas por quase 600 grupos indígenas no país, espaços de preservação ambiental, parques, áreas públicas e riquezas minerais dos Estados Unidos. Essa nomeação reconhece o direito à autonomia nas reservas como garantia fundamental da Constituição, porque a terra constituiu parte essencial da vida dos índios, que sem território estarão condenados a perecer fisicamente ou culturalmente, o que não é menos grave.
A líder mapuche Elisa Loncón, uma das deputadas eleitas por cota, foi escolhida como presidente da nova Assembleia Constituinte do Chile, com a função de organizar a redação dos artigos da nova Carta do país e articular o diálogo entre as distintas bancadas que formam o órgão.
Dois bons exemplos que vem do restante do mundo, que procuram aumentar a inclusão e o respeito às diferenças, enquanto nós nos tornamos cada vez mais excludentes e agressivos com aqueles que não pensam e agem exatamente como nós, fechados em nossos grupos de WhatsApp com uma visão extremamente restrita dos demais ao redor.
Enquanto isso, assistimos agora em julho de 2021 os protestos pacíficos de 43 povos indígenas de diversas regiões brasileiras em Brasília, em que mais de 850 representantes pediram proteção aos Yanomami e Mundukuru, assim como a manutenção da demarcação de suas terras e o fim da agenda excludente no Congresso Nacional. Tudo o que conseguiram, exatamente em frente à Fundação Nacional do Índio (Funai): serem escorraçados pela Polícia Militar.
Tem algo de podre, e não é no reino da Dinamarca.
Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.