Luciana Constantino | Agência FAPESP – Artigo publicado por pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) na revista Frontiers in Physiology discute mecanismos pelos quais o novo coronavírus provoca lesões nos rins de pacientes com COVID-19. O estudo de revisão pode embasar novas pesquisas voltadas à busca de um tratamento capaz de prevenir problemas mais graves no sistema renal ou até mesmo o desenvolvimento de uma doença crônica.
O trabalho mostrou que a interação do vírus com a enzima conversora de angiotensina 2 (ACE2, na sigla em inglês), além de permitir a infecção e replicação do SARS-CoV-2 na célula humana, pode provocar importante desequilíbrio nos sistemas renina-angiotensina (que regula a pressão arterial) e calicreína-cinina (envolvido em vários processos biológicos), influenciando, por exemplo, inflamação, controle da pressão sanguínea e proliferação celular.
Esse comprometimento da função biológica da ACE2 pode levar à redução do fluxo sanguíneo renal e da taxa de filtração glomerular (TFG), alterando a capacidade dos rins de eliminar substâncias (metabólitos) que em excesso são tóxicas para o organismo. Além disso, há um aumento da vasoconstrição, que também sobrecarrega e compromete a função renal.
“Estudos e revisões sistemáticas confirmaram a incidência de 20% a 40% de lesão renal aguda em pacientes com COVID-19. Agora estão sendo publicados dados mostrando que em alguns casos a recuperação é mais lenta e em outros há sequelas, necessitando de diálise para esses pacientes”, afirma a pesquisadora Nayara Azinheira Nobrega Cruz, primeira autora do artigo.
Conduzido na Escola Paulista de Medicina da Unifesp, o trabalho integra o doutorado de Cruz e teve apoio da FAPESP por meio de três projetos (18/16653-7, 17/17027-0 e 18/23953-7).
Outra parte do estudo, que analisou um conjunto de dados relacionados à infecção pelo SARS-CoV-2 em gestantes e o papel de ACE2 na placenta, também foi publicada recentemente na Clinical Science. Mostrou que grávidas infectadas pelo novo coronavírus correm mais risco de desenvolver pré-eclâmpsia, caracterizada pela elevação da pressão arterial materna e que pode trazer complicações para mãe e bebê (leia mais em: https://agencia.fapesp.br/36563/).
Uma das orientadoras da pesquisa, juntamente com o diretor superintendente do Hospital do Rim e integrante do Centro de Contingência do Coronavírus de São Paulo, José Medina Pestana, a professora Dulce Elena Casarini destaca a preocupação com um possível crescimento de casos graves de lesão nos rins decorrentes da COVID-19.
“Se há um aumento agora pela procura de diálise, no futuro poderemos ter demanda maior por transplantes”, diz a professora, em entrevista à Agência FAPESP.
No Brasil, o número de transplantes de rim se manteve em pouco mais de 5.900 ao ano entre 2017 e 2019, segundo dados do Ministério da Saúde. Mas a lista de espera por esse tipo de órgão teve aumento, passando de 28.351 pacientes para 29.554 no mesmo período.
Pesquisa de grupo internacional publicada no dia 1º de setembro no Jornal da Sociedade Americana de Nefrologia, com base em dados dos Estados Unidos, apontou que, em média, sete pessoas precisaram de diálise ou de transplante de rim a cada 10 mil pacientes de COVID-19 com quadros leves ou moderados. Entre os pacientes infectados com o coronavírus e não hospitalizados, o risco de sofrer lesão renal aguda em um período de seis meses foi 23% maior se comparado aos não infectados.
Múltiplas funções
Supervisora do Laboratório de Rim e Hormônios da Unifesp, Lilian Caroline Gonçalves de Oliveira, coautora do artigo, afirma que um dos pontos analisados foi o papel de ACE2 na patogênese da COVID-19.
“A importância de ACE2 como receptor para internalização do SARS-CoV-2 na célula já estava comprovada. Com essa interação entre vírus e receptor, a enzima deixa de desempenhar a função protetora, o que acaba tornando o sintoma de COVID-19 cada vez mais preocupante”, afirma Oliveira.
No estudo, o grupo destaca que o mecanismo exato de complicação renal em pacientes com o novo coronavírus ainda é desconhecido e pode ser multifatorial. Porém, aponta que a infecção é capaz de provocar lesão indireta nos rins devido à inflamação sistêmica, à insuficiência de oxigênio transportado para os tecidos do corpo (hipoxemia) e ao desequilíbrio do sistema renina-angiotensina.
Esse sistema compreende uma série de reações que ajudam a regular a pressão arterial. Quando a pressão cai, por exemplo, os rins liberam a enzima renina na corrente sanguínea. Ela produz angiotensina 1, que é convertida pela ACE em angiotensina 2, um hormônio ativo que atua nas paredes musculares das pequenas artérias levando à vasoconstrição. Em condições normais, há um balanço harmônico entre ACE e ACE2 para manter a homeostase do organismo.
Além disso, o novo coronavírus pode infectar células renais causando lesão direta e comprometimento do sistema renina-angiotensina intrarrenal, contribuindo assim para doenças agudas e de longo prazo. “Fizemos um compilado para embasar futuros estudos e mostrar a importância do impacto da COVID-19 em outros órgãos, além do sistema respiratório”, diz Cruz.
O artigo Angiotensin-Converting Enzyme 2 in the Pathogenesis of Renal Abnormalities Observed in COVID-19 Patients pode ser lido em www.frontiersin.org/articles/10.3389/fphys.2021.700220/full#h4.
Este texto foi originalmente publicado por Agência FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.