Coisas alegres

Daniel Medeiros*

 

Cafรฉ. Cafรฉ forte. Passadinho na hora. Fogรฃo de lenha. Com uma broa de milho, a manteiga derretendo quando a faca serrilhada passa no miolo, que absorve e suja os dedos e os lรกbios ficam brilhando. Uma janela com caixilhos de madeira, a pintura descascando, verde esmeralda, um vasinho com violetas roxas no canto e uma escultura de uma mulher negra com uma bata rosa e pespontos amarelos, com um pedaรงo do braรงo faltando. A paisagem, um pequeno morro, uma estrada de barro vermelho, um mourรฃo e um bando de galinhas beliscando na grama. Um cachorro marrom enrodilhado, a cabeรงa erguida por algum barulho vindo de perto. E o cafรฉ descendo quentinho, a pequenaย  xรญcara de esmalte creme como um resumo do mundo. A felicidade do instante.

Beijo. Beijo a(guardado), de uma espera longa, uma viagem, um desencontro, um compromisso inadiรกvel, mas a certeza de que os mil beijos sonhados viveriam o dia do รบnico beijo acontecido. O amor como amizade, sem hierarquia ou sem justificativas, sem causas e consequรชncias, sรณ a platitude da presenรงa silenciosa ou falante, os braรงos em movimentos intensos, os lรกbios se movendo frenรฉticos, os dentes brancos e desajeitados se projetando em um riso gratuito, sem razรฃo ou demonstraรงรตes necessรกrias. A felicidade da presenรงa.

Despedida. No pรฉ da escada, a mochila nos ombros, mais um abraรงo apertado, tentando imprimir no corpo o cheiro e a textura do outro, o querido, que vai ganhar alturas e lonjuras, na busca pelo seu prรณprio traรงado no mundo. Um adeus prometido desde menino, a curiosidade e o questionamento dos poucos anos jรก demonstrando que nรฃo aceitaria distรขncias curtas e que o horizonte seria sempre um convite. Faltava sรณ a plumagem pras asas. E na hora do voo, de nada adianta ficar olhando para os prรณprios pรฉs. Um รบltimo cheiro e a esperanรงa ao dizer: “atรฉ a volta”.ย 

A felicidade do desprendimento.

O livro. As pรกginas amarelecidas como rugas, o cheiro de tempo impregnado, tempo de sabedoria, que espera o visitante, aguarda que se acomode, que resista, aceite e entรฃo comeรงa a se entregar, devagarinho, no ritmo de cada pรกgina, na narrativa que fabula a vida mas nรฃo a imita, pois que senรฃo nรฃo adiantaria ser arte. Seu peso confortando a mรฃo que o carrega, companheiro para o momento possรญvel do descanso da lida, em um banco de praรงa, na espera do รดnibus, do dentista, da oferta do emprego, do encontro que demora ou entรฃo o encontro รฉ ele mesmo, no sofรก da sala, na cadeira na varanda, o sol baixando lรก longe, os olhos desviados da natureza para as profundezas da leitura. A felicidade da imaginaรงรฃo.

A viagem. Todas as viagens: pra esquina comprar o jornal na banquinha que resiste como um totem; pra Turquia, visitar Trรณia e saber onde comeรงou aย  trajetรณria de Ulisses; pra montanha, buscando o descanso da subida;ย  pro encontro no bar, com mesas na calรงada, para ver a cidade crescer em volta do รณcio; pra velhice, que cada dia leva e nรฃo traz mais, exceto na memรณria do que se viveu e que รฉ o tesouro e o segredo desse enigma.

 

*Daniel Medeiros รฉ doutor em Educaรงรฃo Histรณrica e professor no Curso Positivo.

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