Daniel Medeiros*
Um empresรกrio bilionรกrio, jovem, branco, heterossexual, fez um comentรกrio jocoso e homofรณbico sobre um senador da Repรบblica. O senador rebateu diante dele, olho no olho, dizendo, entre outras coisas: โComo o senhor espera que seus filhos o vejam?โ. O empresรกrio entรฃo, pediu desculpas. Fim do ato.
O Brasil รฉ o paรญs campeรฃo mundial de violรชncia de natureza sexual contra mulheres e contra a comunidade LGBTQIA+. Violรชncia de toda ordem, fรญsica e moral, econรดmica e social. Mas a pior das violรชncias รฉ a naturalizaรงรฃo da violรชncia. No caso do senador, foi possรญvel ver em vรกrios meios de comunicaรงรฃo e nas redes sociais a perplexidade de muitos diante de um assunto que veio ร tona โsem ter nenhuma relaรงรฃo com a CPIโ, para concluรญrem: โO senador sรณ quis aparecer.โ
A ideia de que a defesa do senador รฉ que foi exagerada, tresloucada ou, no mรญnimo, inapropriada, revela o tamanho da crise de reconhecimento do “outro” na qual nos encontramos. E a essรชncia da Democracia estรก justamente nessa capacidade de reconhecer o “outro” como alguรฉm dotado de direitos que nรฃo precisam coincidir com os nossos para ser respeitado ou pelo menos tolerado na esfera pรบblica, jรก que ninguรฉm pode controlar o que as pessoas pensam, mas, sem dรบvida, pode-se coibir a forma como as pessoas agem, na medida em que essa aรงรฃo inflige sofrimento aos outros, entendendo-se sofrimento como qualquer forma de constrangimento ร s escolhas que essa pessoa fez para viver, desde que essas escolhas, por sua vez, nรฃo firam, humilhem ou ameacem ninguรฉm.
A Democracia funciona ou deveria funcionar como uma rede de cuidado e reconhecimento mรบtuos, fundada em uma premissa bรกsica: posso existir e atuar no espaรงo pรบblico da forma que me aprouver, desde que nรฃo ponha em risco a integridade de ninguรฉm. Tal postura nรฃo implica ter a simpatia dos outros, nem mesmo a aprovaรงรฃo, mas sim, o respeito e a tolerรขncia. Viva e deixe viver, a igualdade รฉ o direito de todos viverem nas suas diferenรงas.
Mas, como sabemos, nรฃo tem funcionado assim. A ideia de que uma suposta maioria tem o direito de determinar como a minoria deve ou pode viver ganhou forรงa e libertou os pensamentos duros das cabeรงas mais moles. A pessoa entende que รฉ seu direito dizer o que pensa e รฉ a minoria que tem de se conformar. Recentemente, um jornalista chegou a dizer: โQuem determina o que รฉ falso ou nรฃo?โ. Isto รฉ, atรฉ o direito de dizer mentiras, sem base e sem fatos, passou a ser direito, nรฃo importa se isso expรตe pessoas ao risco, ao medo, ร s doenรงas.
Mas eis que surge uma tรชnue luz no fim do tรบnel, frรกgil e sem qualquer garantia, mas, mesmo assim, uma luz. A frase do senador, dita olho no olho de seu detrator: โComo o senhor espera que seus filhos o vejam?โ. E o pedido de desculpas do homem branco, rico, jovem, heterossexual. Uma vitรณria do reconhecimento, uma vitรณria da compreensรฃo, uma vitรณria do futuro, dos filhos que olharรฃo esse pai com um pouquinho mais de orgulho. Uma vitoriazinha. Que seja!
Na heranรงa bilionรกria que os filhos desse homem vรฃo receber, esse pedido de desculpas terรก um lugar especial. O da transmissรฃo patente de que, apesar de tudo, ele sabe o que deveria ter feito o tempo todo.
*Daniel Medeiros รฉ doutor em Educaรงรฃo Histรณrica e professor no Curso Positivo.
daniemedeiros.articulista@gmail.com
@profdanielmedeiros
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**Artigos de opiniรฃo assinados nรฃo reproduzem, necessariamente, a opiniรฃo do Curso Positivo.