A população em situação de rua e os trabalhadores de saúde e assistência social que os atendem estão entre os grupos sociais mais expostos ao novo coronavírus, indica estudo desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Biologia Celular e Molecular (PGBioCel) da Universidade Federal do Paraná (UFPR). A pesquisa se baseia nos resultados dos exames sobre as amostras colhidas em agosto de 2020 de 203 pessoas em situação de rua e 87 profissionais do atendimento social e em saúde na Zona Leste da cidade de São Paulo. As amostras foram submetidas a testes moleculares e sorológicos no Laboratório de Virologia do Departamento de Microbiologia Médica da Universidade do Estado de São Paulo (USP). Os resultados foram publicados nesta quarta-feira (20) na revista PLOS Neglected Tropical Diseases (Plos NTD).
O estudo apontou uma situação em que os dois grupos pesquisados apresentaram resultados negativos para os testes moleculares (RT-qPCR), que medem a presença de material genético do vírus no organismo, mas houve percentuais altos de resultados positivos para a Imunoglobulina G (IgG). Chamados “anticorpos de memória”, esses anticorpos são os que permanecem no organismo por prazo mais longo. No caso do vírus Sars-Cov-2, os IgG podem ser encontrados até oito meses depois da infecção.
O quadro mostra um indicativo de que esses grupos estão em situação de exposição constante ao novo coronavírus, portanto, a um risco alto de desenvolver a covid-19. O resultado positivo para “anticorpos de memória” ocorreu em 54,68% das pessoas em situação de rua analisadas. Entre os trabalhadores de atendimento a essa população, houve 47,13% de positivos para IgG. As taxas indicam um grau de exposição similar nos dois grupos.
“Apesar de nenhum morador de rua ou profissional de assistência ter o vírus no momento da coleta, o percentual sorológico de IgG é o maior de covid-19 no mundo até o momento”, afirma o professor Alexander Biondo, do PGBioCel, que orienta o estudo.
A soma de testes moleculares e sorológicos é um dos diferenciais da pesquisa, porque permite traçar um panorama mais preciso sobre como se deram os contágios de uma população. Segundo a pesquisadora Anahi Chechia do Couto, cujo doutorado no PGBioCel incorpora em parte a pesquisa, a combinação de exames permite ir além de um retrato momentâneo, ajudando a entender melhor como o vírus se comporta em um universo específico.
“Pudemos observar que mais da metade dos testados já foi contaminada pelo vírus, mesmo que nenhum estivesse transmitindo o vírus no momento da coleta. Não há um número preciso de óbitos por covid-19 nessa população, então não podemos afirmar o real impacto referente à mortalidade, mas considerando toda a vulnerabilidade deles acredito que que tenha sido grande”, avalia.
Extrema pobreza impede acesso a medidas de higiene básicas contra a covid-19
A pesquisa tem levantado dados que revelam aspectos relacionados às condições de sobrevivência da população de rua, na tentativa de identificar possíveis correlações com fatores de risco ou, eventualmente, de proteção referentes à covid-19.
Quem está em situação de rua no Brasil – população estimada em 222 mil pessoas, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) – em geral não pode contar com medidas sanitárias básicas de prevenção contra a covid-19, como higiene constante das mãos, máscaras protetoras filtrantes e distanciamento. Ainda de acordo com o Ipea, na nota técnica “População em situação de rua em tempos de pandemia”, divulgada em junho, das 13 capitais do Nordeste e Sudeste, 12 contavam com abrigos, mas outras ações eram menos frequentes: apenas seis ofereciam orientação para esse público, por exemplo.
“A vulnerabilidade dessas pessoas está relacionada à pobreza extrema e à invisibilidade social”, lembra a pesquisadora, que estudou o comportamento da leptospirose em pessoas em situação de rua no seu mestrado, também no PGBioCel. Como a covid-19 é uma doença em que aspectos comportamentais contam na prevenção contra infecção, esses também estão sendo verificados, como a vida em abrigos, o contato para pedir doações e o compartilhamento de utensílios, por exemplo.
“Apesar de muitos dizerem que essa população não foi atingida pela doença por serem excluídos e assim isolados da sociedade, não podemos fazer essa afirmação. São sim isolados socialmente, mas a maioria está presente no centro das cidades, onde há maior circulação de pessoas e consequentemente maior disseminação direta ou indireta, por exemplo no manuseio de materiais recicláveis. Mesmo aqueles que dormem em abrigos também estão expostos pela aglomeração”.
Hipótese é de que população em situação de rua permitiria mapear disseminação geográfica do vírus
A pesquisadora investiga a hipótese de que pessoas em situação de rua são “sentinelas” para Sars-Cov-2, o que significa dizer que o mapeamento dessa população permitiria entender como se dá a disseminação geográfica do vírus. Segundo Anahi, a expectativa é que esse grupo social exponha a epidemiologia do vírus em outras populações vulneráveis e em populações no geral.
Os resultados dos testes apontaram hipóteses que resultam de cruzamentos de dados (análise estatística de fatores de risco), ou seja, que ainda precisam de estudos mais amplos e específicos para serem confirmadas e, a partir daí, compreendidas e utilizadas como ferramenta para intervenções.
Uma das frentes do estudo, por exemplo, busca identificar se existe associação entre a guarda de animais e uma exposição menor ao vírus da covid-19. Na amostragem, houve menor presença de anticorpos IgG nas pessoas em situação de rua que têm animais de companhia, incluindo cães e gatos. Para os cientistas, isso sugere que as pessoas que possuem animais sob seus cuidados mantêm vínculos sociais mais fortes e portanto tomam mais cuidado também de si mesmas.
As coletas foram realizadas ao longo de uma semana intensa de trabalho no bairro da Mooca, na capital paulista, em agosto do ano passado. O grupo que colheu e processou as amostras contava com cerca de 20 pesquisadores, entre eles pesquisadores da UFPR, USP e UNISA, com apoio da secretaria municipal de saúde de São Paulo. Além do exercício de biologia molecular, a maratona também contou como experiência pessoal relevante. Um dos testados pela equipe, por exemplo, foi o padre Julio Lancelotti, conhecido pelo trabalho na Pastoral do Povo da Rua.
“Conversei com um senhor que já havia trabalhado na área da saúde e sabia exatamente os procedimentos. Alguns também nos contam suas histórias. Muitos são de outros estados e foram tentar a vida em São Paulo, contam da grande dificuldade de arrumar emprego fixo e moradia. Especificamente nessa coleta reparei que muitos estavam há pouco tempo nas ruas, menos de um ano”, diz Anahi.
O estudo mostrou ainda que indivíduos de fora de São Paulo (ou seja, que migraram para a capital), com dor no corpo e que perderam o paladar foram associados com maior taxa de infectados pelo Sars-Cov-2, o que sugere que tiveram maior exposição à infecção.
Segundo os pesquisadores, o próximo passo da pesquisa será verificar se a mesma condição da população em situação de rua ocorre em Curitiba e Região Metropolitana. Dessa forma, buscam embasar políticas protetivas específicas para essas populações em vulnerabilidade.
Na USP, os estudos são coordenados pelos professores Edison Durigon e Ana Márcia de Sá Guimarães, ambos do Departamento de Microbiologia Médica do Instituto de Ciências Biológicas (ICB II). A equipe desenvolve, além da parceria com a UFPR, diversos projetos envolvendo vacinas, fisiopatologia, novas variantes e seu impacto.
Por Camille Bropp
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