“Vida Loca”

Daniel Medeiros*

 

Essa foi a frase que o estudante de ensino mรฉdio de uma escola cรญvico-militar de Imbituva, Paranรก, escreveu na sua carteira, junto com o desenho de uma folha de maconha. Alguรฉm o denunciou e, durante a aula, o monitor – um cabo aposentado da Polรญcia Militar – tirou-o da sala para admoestรก-lo. Tratava-se de indisciplina escolar, dano ao patrimรดnio pรบblico, alรฉm de propaganda de droga ilรญcita. Vรกrios eram os motivos para chamar a atenรงรฃo do jovem, afinal, uma escola รฉ um lugar para o exercรญcio de responsabilizaรงรฃo e, sem dรบvida, nossos atos, na medida em que afetam os outros, os prรณximos, os distantes e mesmo os que nem estรฃo aqui, como quando causamos danos ao meio ambiente, devem ser sucedidos de explicaรงรตes, justificativas e, se for o caso, reparaรงรตes.

O monitor provocou a interrupรงรฃo de uma aula, causando prejuรญzo para os demais alunos e alunas. Desnecessรกrio. Um sinal preocupante a respeito da ordem de importรขncia das coisas no universo da escola cรญvico-militar. Um aluno comete um ato questionรกvel, o aparato de controle disciplinar toma conhecimento do fato e resolve intervir no espaรงo do aprendizado para retirar o aluno de sala, interrompendo a aula e atrapalhando o trabalho da professora. “A seguranรงa vem em primeiro lugar”, endossariam os pais e professores que votaram pela transformaรงรฃo da escola pรบblica em cรญvico-militar. Outro equรญvoco, e grave: a escola, por concepรงรฃo, รฉ lugar de invenรงรฃo e, por isso, de compromisso com a liberdade. Desde Kant que sabemos que sem liberdade, a razรฃo nรฃo se enraรญza e o conhecimento nรฃo progride. Em um espaรงo disciplinarizado, ensinou-nos outro filรณsofo, sรณ se obtรฉm como resultado โ€œcorpos dรณceisโ€ e nรฃo cidadรฃos criativos e protagonistas de seus prรณprios futuros. Aliรกs, nesse ano do centenรกrio de nascimento do maior educador brasileiro, Paulo Freire, a simples ideia de uma escola com policiais aposentados como administradores disciplinares o faria morrer de novo. De tristeza, dessa vez. Ou de vergonha.

Mas a intervenรงรฃo na sala de aula para cobrar o aluno de sua atitude foi sรณ a ponta do iceberg, segundo a denรบncia do Ministรฉrio Pรบblico do Paranรก. O monitor teria ameaรงado o aluno de morte, afirmando โ€œque jรก tinha matado vรกrios e que ele nรฃo iria fazer diferenรงaโ€. O diretor, um sargento aposentado da Polรญcia Militar, teria, segundo a denรบncia, tentado acobertar a ameaรงa de seu colega de farda. Ou seja, o jovem havia sido constrangido e ameaรงado e se os fatos nรฃo tivessem chegado aos ouvidos dos promotores, tudo teria permanecido igual na escola pรบblica de Imbituva: o dia comeรงaria mais uma vez com a formaรงรฃo em filas para o inรญcio das aulas, com a execuรงรฃo do hino e o hasteamento da bandeira e com o silรชncio imposto nos corredores e nas salas de aula. O aluno submetido aos crimes – segundo a denรบncia do Ministรฉrio Pรบblico – de ameaรงa, vias de fato, violรชncia arbitrรกria, submissรฃo de adolescente a constrangimento, โ€œnรฃo faz diferenรงaโ€ para o policial responsรกvel de colocar โ€œordemโ€ na escola, com o aplauso de muitos pais e professores e tantos outros, mas que certamente nรฃo admitiriam essa atitude com seus prรณprios filhos, pois para eles seus filhos nรฃo sรฃo como o jovem que desenhou a folha de maconha na carteira.

Somos um paรญs dividido entre os que gostam de dizer que o salรกrio dos policiais vem dos impostos que eles pagam e os que ganham pouco e veem seus filhos sofrerem a aรงรฃo violenta desses indivรญduos fardados. E que tambรฉm ganham pouco. Um paradoxo que nรฃo parece incomodar a maioria. Disciplina, seguranรงa. Interessante imaginar que poderemos ser um paรญs que progrida com repressรฃo. Quase um oxรญmoro.

ร‰ comum referirmo-nos aos policiais como โ€œagentes da leiโ€. Nรฃo foi, em absoluto, esse caso, com esses policiais. A lei diz claramente o que nรฃo pode ser feito com um cidadรฃo, principalmente um menor de idade. Mas os aplausos de muitos pais e professores nรฃo sรฃo dirigidos para o cumprimento da lei, mas para a exigรชncia da submissรฃo sem qualquer recompensa: a vida pode ser pรฉssima, o transporte pรบblico um inferno, o serviรงo de saรบde uma quimera, as possibilidades de melhoria social uma utopia, a invisibilidade a tรดnica diรกria mas, mesmo assim, a obediรชncia tem de ser total ou entรฃo a repressรฃo torna-se โ€œnecessรกriaโ€.

“Vida loca”, isso sim. “Vida loca”. De que outra forma รฉ possรญvel descrever um cenรกrio como esse?

*Daniel Medeiros รฉ doutor em Educaรงรฃo Histรณrica e professor no Curso Positivo.
daniemedeiros.articulista@gmail.com
@profdanielmedeiros
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**Artigos de opiniรฃo assinados nรฃo reproduzem, necessariamente, a opiniรฃo do Curso Positivo.

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