Anderson Marcos dos Santos*
O Brasil é o segundo país com mais mortes por covid, superando 590 mil óbitos, ficando atrás somente dos EUA. Algumas das razões desse fracasso estão aparecendo agora nas investigações feitas pela CPI da pandemia, que vem apontando para diversos crimes que teriam sido cometidos por autoridades públicas. Outras razões estão evidentes desde o primeiro caso no país, entre elas, o negacionismo, a falta de coordenação nacional ao combate à doença, o incentivo à aglomeração e ao não uso de máscara pelo presidente da República e, principalmente, o atraso na compra das vacinas.
Os governos estaduais e municipais também têm sua parcela de culpa, seja por endossar as práticas do governo federal, seja pela falta de coragem em adotar medidas mais duras na contenção da transmissão do vírus. As ações mais efetivas foram tomadas visando apenas o controle de leitos nas UTIs, e não a circulação do vírus.
Recentemente, outra medida de combate à pandemia começou a ser implantada em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, e até em estados como o Rio Grande do Norte. Trata-se do passaporte vacinal, uma medida jurídica que, com variações em cada localidade, permite a realização de eventos com grande número de pessoas e locais de uso coletivo — como academias, cinemas e locais turísticos, desde que vacinadas com pelo menos uma dose da vacina.
Tal ação foi contestada judicialmente sob o argumento de que viola a liberdade individual de locomoção, o que, por enquanto, vem sendo acertadamente negada pelos tribunais do país. A liberdade de locomoção não é direito absoluto, aliás, como nenhum é. Nem está sendo atingida de maneira absoluta. A limitação parcial desse direito individual pode e deve acontecer quando se está diante da necessidade da proteção de um bem maior como é a saúde pública e o bem-estar coletivo. Contudo, não parece ser a legalidade da medida o problema da adoção do passaporte vacinal, mas sim, a finalidade e a eficácia desse documento.
Não existe fundamentação, do ponto de vista sanitário, para a medida. Não serve como incentivo para a vacinação, a adesão dos brasileiros à vacina está próxima de 90%, e o baixo número de vacinados se dá pela escassez de vacinas, e não pela falta de procura. Ao contrário, o passaporte vacinal, da forma como está normatizado, é um risco no combate à pandemia. Por um lado, porque é concedido a pessoas com apenas a primeira dose da vacina, sem a imunização completa, por outro, pode gerar uma falsa sensação de segurança e incentivar a circulação desprotegida.
A única justificativa para a sua adoção é a econômica, ao permitir o funcionamento de setores que estão com restrições ou fechados desde o começo da pandemia. Então, para não resultar em aumento da transmissão do vírus, o passaporte deveria ser restrito àqueles com imunização completa, além de exigir outras medidas, como o uso obrigatório de máscaras adequadas e limite de ocupação, conforme o tamanho do espaço e a circulação de ar.
Apesar das boas intenções que possam existir na criação das normas que instituem o passaporte vacinal, a medida repete os erros que, teimosamente, insistimos em cometer. Parece faltar coragem para enfrentar a pandemia obedecendo as orientações da ciência e sobrar populismo, com medidas ineficazes, quando não agravantes, em relação à pandemia.
O controle da pandemia precisa de ampliação da cobertura vacinal, ações de mobilização social para evitar aglomerações e cuidados de higiene, medidas objetivas, como distribuição de máscaras adequadas para o transporte público e o combate a toda forma de negacionismo ou charlatanismo.
*Anderson Marcos dos Santos, doutor em Sociologia, mestre em Direito, é coordenador adjunto e professor do mestrado em Direito da Universidade Positivo (UP).
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