Daniel Medeiros*
โVocรช estรก gordo”, รฉ-me comum ouvir sempre que encontro algum conhecido. E sempre sinto-me obrigado a explicar que, na verdade, nรฃo estou gordo. Sou um homem gordo. ร uma grande dificuldade convencer as pessoas desse fato prosaico de que minha condiรงรฃo de homem gordo nรฃo รฉ contingente, mas o resultado de genรฉtica e estilo de vida. Mais curioso รฉ que, dito isso, todos querem me consolar por eu ser um homem gordo e, ao mesmo tempo, incentivar-me a emagrecer, como se meu destino exigisse isso e que falta apenas determinaรงรฃo da minha parte para realizรก-lo. Nรฃo adianta explicar a eles que meus pais sรฃo gordos, que eu gosto muito de comer e que detesto fazer exercรญcios, exceto caminhar, o que nรฃo รฉ suficiente para manter um corpo atlรฉtico e esguio. Tambรฉm รฉ inรบtil informar que sempre me vi como sou e que meu sobrepeso nunca foi um fator impeditivo de nada na minha vida, nem do trabalho, nem do amor, nem das exigรชncias do corre-corre cotidiano. Mais difรญcil ainda รฉ convencรช-los de que nรฃo sou uma pessoa doente e que mantenho os exames de sangue em dia – o que gera atรฉ mesmo certa frustraรงรฃo quando mostro os papรฉis com as indicaรงรตes de que tudo vai bem com a minha saรบde. Como sou uma pessoa minimamente inteligente e informada, nรฃo exagero em nada e evito o que me faz mal. Sรณ nรฃo vivo com a fissura da magreza como quem busca um visto para o passaporte da normalidade. “Sou normal ร minha maneira”, concedo aos renitentes, para acalmรก-los, e eles entรฃo riem amarelo, aceitando minha afirmaรงรฃo com olhares de compaixรฃo.
Minha vivรชncia de homem gordo, e de todos esses embates com os que querem โme ajudarโ, instruem-me em relaรงรฃo ao drama dos que sofrem preconceitos por suas singularidades: os tรญmidos, os baixinhos, os carecas, os que possuem alguma limitaรงรฃo fรญsica ou intelectual, os homossexuais, os idosos, os que tรชm alguma mancha na pele, os que tรชm lรกbio leporino, os negros, os albinos, os que tรชm pรฉs tortos, os que tรชm um dedo a mais, ou a menos, os gagos, os que tremem, os que suam em demasia, os que tรชm caspa ou espinhas, enfim, toda a infinita gama de pessoas comuns que nรฃo preenchem os requisitos do perfil do Instagram, a despeito da compreensรฃo que tenho da infinita diferenรงa entre essas diferenรงas. Uso a palavra “drama”, mas com um quรช de picaresco, pois que nunca compreendo por que atribuรญmos aos que nos olham torto esse poder de julgamento que nรฃo possuem. Daรญ o certo ridรญculo da situaรงรฃo de nos incomodarmos e atรฉ, em alguns casos, sofrermos com essas sentenรงas declaratรณrias de nossas supostas inconformidades. Ora, quando o moรงo ou moรงa magrinhos, sarados, olham minhas cheiuras com ares de juรญzes da inquisiรงรฃo,ย cabe sรณ a mim lembrar que nem catรณlico sou, e que o inferno para o qual eles acreditam poder me enviar porque nรฃo sigo suas homilias nunca existiu no meu ideรกrio de vida boa.ย
A propรณsito, devo destacar que o sentimento contrรกrio nรฃo รฉ verdadeiro. Eu nada tenho contra os que gozam da ilusรฃo de sua perfeiรงรฃo. De alguma maneira, como orquรญdeas, eles enfeitam a paisagem e dรฃo um ar de harmonia platรดnica ao ambiente. Como me opor? Em absoluto. Minha versรฃo Fernando Botero compรตe muito bem o cenรกrio Bauhaus dos perfeitinhos, enriquecendo e colorindo o campo de visรฃo dos passantes. Nรฃo hรก do que reclamar. O que me ocorre diante do preconceito รฉ que faltou, tanto na educaรงรฃo familiar quanto no ensino escolar, uma formaรงรฃo para a diferenรงa, estabelecendo-a como constitutiva das pessoas e nรฃo como uma exceรงรฃo. Se todos fossemos iguais, nรฃo haveria qualquer chance de desenvolvimento humano. Se todos fossemos diferentes, nรฃo conseguirรญamos jamais nos relacionar. ร exatamente porque somos todos iguais e exatamente porque somos todos diferentes que conseguimos compor milhares, milhรตes de combinaรงรตes possรญveis. E รฉ daรญ que vem tudo de bom. E, รฉ lรณgico, tudo de ruim tambรฉm. Escolher o que valorizar, o que destacar, o que dar importรขncia e prosseguimento รฉ uma de nossas tarefas sociais mais importantes e urgentes. Da minha parte, nรฃo resta dรบvida: o que eu sou, como eu sou, por que eu sou como sou, รฉ o fruto da minha vontade e do meu melhor juรญzo. Se eu nรฃo firo, nรฃo humilho e nรฃo ameaรงo ninguรฉm, entรฃo, ninguรฉm tem nada a ver com isso. Cada um com cada qual. Mazal tov.
*Daniel Medeiros รฉ doutor em Educaรงรฃo Histรณrica e professor no Curso Positivo.
daniemedeiros.articulista@gmail.com
@profdanielmedeiros
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**Artigos de opiniรฃo assinados nรฃo reproduzem, necessariamente, a opiniรฃo do Curso Positivo.