O dia da vergonha

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Daniel Medeiros*

 

No dia 17 de junho de 1936, os membros do Supremo Tribunal Federal – na época chamado de Corte Suprema – decidiram não tomar conhecimento do pedido de  habeas corpus impetrado pelo advogado Heitor Lima em favor de Maria Prestes, conhecida nos livros de História como Olga Benário, recolhida na Casa de Detenção, grávida, para que ela não fosse deportada para a Alemanha e que pudesse responder por seus alegados crimes aqui mesmo no Brasil.

Heitor Lima havia tido sucesso na defesa dos tenentes envolvidos no levante do Forte de Copacabana, em 1922. Luís Carlos Prestes, companheiro de Olga e principal liderança do Partido Comunista do Brasil, fora um dos principais nomes do tenentismo, embora não tivesse participado desse primeiro levante. Ele quem pediu ao doutor Heitor para cuidar do caso de Olga.

Quais eram as acusações contra ela? Ser “perigosa à ordem pública e nociva aos interesses do país“, conforme dispunha o art. 113, §15, da Constituição de 1934. Quem era o acusador? O Estado, na figura do Ministro da Justiça, Vicente Rao, responsável pelo fechamento da Aliança Nacional Libertadora, presidida por Luís Carlos Prestes, e pela redação da Lei de Segurança Nacional, de caráter antidemocrático e repressor.

É preciso lembrar que, em 1936, o país estava sob Estado de Guerra, medida prevista no artigo 161 da Constituição, o que implicava a suspensão das garantias constitucionais que pudessem “prejudicar direta ou indiretamente a segurança nacional”. Some-se a isso um decreto que Vargas havia baixado em março  de 1936, dois meses após a prisão de Maria Prestes, suspendendo a garantia constitucional do habeas corpus em face de “comoção intestina grave, articulada em diversos pontos do país desde novembro de 1935, com a finalidade de subverter as instituições políticas e sociais”. Referia-se à Intentona Comunista, tentativa de golpe liderada por Prestes e que teve a participação efetiva de Olga Benário.

O relator do caso no Supremo, ministro Bento de Faria, votou pelo não conhecimento do pedido. Mais do que isso: sequer atendeu a solicitação de tomar conhecimento do exame para comprovar a “alegada gravidez” da impetrante. A decisão foi acompanhada pela maioria dos ministros. Ou seja: o Supremo Tribunal Federal ignorou o pedido de uma mulher presa, grávida, alemã, judia, para não ser deportada para a Alemanha de Hitler, onde leis antissemitas estavam em vigor e, portanto, não havia como garantir sua integridade física e mesmo por sua vida. Olga morreu numa câmara de gás em 23 de abril de 1942.

O mais relevante nessa história é que o pedido de habeas corpus feito pela defesa de Maria Prestes não pedia a sua libertação, mas que ela fosse julgada no Brasil. Não havia como negar a participação dela na Intentona. Ela não negava. Mas, como bem lembrava o advogado em sua petição, “a paciente impetra habeas-corpus, não para ser posta em liberdade; não para neutralizar o constrangimento de qualquer processo; não para fugir ao julgamento dos seus atos pelo judiciário: mas, ao contrário, impetra habeas-corpus para não ser posta em liberdade; para continuar sujeita ao constrangimento do processo que contra ela se prepara na polícia; para ser submetida a julgamento perante os tribunais brasileiros. Em suma: o habeas-corpus é impetrado a fim de que a paciente não seja expulsa”.

Outro argumento usado pelo doutor Lima foi de que, o fato de Olga estar grávida, implicava que a pena de expulsão afetaria uma pessoa inocente, concebida no Brasil e, portanto brasileira, sobre a qual não poderia caber essa pena. Disse assim o advogado: “Se a lei considera na gestante duas pessoas distintas, a mãe e o nascituro; se a Constituição estatui que nenhuma pena passará da pessoa do delinqüente […] – se a expulsão é uma pena; se tal pena alcançará em seus efeitos o filho da expulsanda, embora ainda não nascido: segue-se que o decreto de expulsão, além de ferir o preceito constitucional protetor da maternidade, ofende ainda o princípio da personalidade da pena. […] Maria Prestes sustenta que o seu filho é brasileiro, foi concebido no Brasil, quer nascer e viver no Brasil. Como brasileiro, tem o direito de não ser expulso do Brasil”.

De nada adiantaram esses apelos à razão, aos princípios do Direito, ao bom senso e à compaixão por uma mulher grávida. A Corte fechou seus ouvidos ao risco de morte de uma mulher e sua filha para atender a um decreto do aspirante a ditador, subordinando-se às circunstâncias ideológicas de um momento em vez dos imperativos permanentes do Direito e da Moral. E votou e despachou sem dores na consciência, mandando-a às favas, como mais tarde, em outra ditadura, outro Ministro também o fez.

Sobre o relator Bento de Farias – que depois tornou-se presidente da Corte Suprema, pode-se ler ainda hoje no site do STF: “As notáveis obras, repletas de ensinamentos que publicou, denotam sua alta cultura jurídica e são consideradas por todos os jurisconsultos fontes primorosas da ciência do Direito”.

Sem dúvida, ainda temos muito o que aprender com a história para evitar que dias vergonhosos como esse se repitam. Como farsa, sempre como farsa.

 

Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor de História no Curso Positivo.
danielmedeiros.articulista@gmail.com

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