*Daniel Medeiros
“- Nรฃo quero saber do lirismo que nรฃo รฉ libertaรงรฃo.โ ( Manuel Bandeira)
No mรชs do centenรกrio da Semana de Arte Moderna, desafiamos nossa auto-imagem de paรญs do sรฉculo XXI com o episรณdio do espancamento atรฉ a morte de um jovem imigrante congolรชs na calรงada de uma das mundialmente famosas praias da cidade “maravilhosa”, o Rio de Janeiro. Enquanto jornais, televisรฃo, editoras, escolas e universidades apresentam suas mais novas reflexรตes sobre a nossa modernidade, agora centenรกria, e esclarecem para os jovens incautos o que foi esse movimento que pretendeu nos tirar do atraso estรฉtico e intelectual, oferecendo uma interpretaรงรฃo de paรญs que inspirava-se nas vanguardas europeias, mas com uma pitada de originalidade tupiniquim, apresentando-nos como um gigante com a cabeรงa nas nuvens, mirando o horizonte promissor, e os pรฉs fincados na terra fรฉrtil e generosa, olhamos, estรกticos, as cenas do espancamento e morte e abandono do corpo do jovem negro ao lado da barraquinha chamada (tรฃo ironicamente!) de Tropicรกlia, o movimento que se alimentou com a boca faminta e escancarada, da antropofagia osvaldiana, e digeriu e expeliu um produto que era sรณ nosso outra vez, mais uma jabuticaba artรญstica, literรกria, musical, cinematogrรกfica, nova, sempre nova, novรญssima, aย demonstrar que por aqui estamos sempre nos reinventando, como quem tenta e fracassa e, com vergonha, livra-se do que fez e jรก anuncia um outro projeto infalรญvel, como os planos do personagem Cebolinha, como os partidos polรญticos que mudam de nome, algo sempre surpreendente e arrebatador, enquanto a sombra etรฉrea da violรชncia do feitor espreita, dia e noite, sem descanso e sem preguiรงa.ย
Irรดnico, nesse pensar sobre modernismos e tropicalismos, o discurso de Caetano Veloso quando disse, radical e profรฉtico, diante de uma plateia ensandecida de jovens dos anos 60, que o vaiava sem parar, depois de tรช-lo aplaudido entusiasmada hรก apenas um ano: “Vocรชs estรฃo por fora! Vocรชs nรฃo dรฃo pra entender. Mas que juventude รฉ essa? Que juventude รฉ essa? Vocรชs jamais conterรฃo ninguรฉm. Vocรชs sรฃo iguais sabem a quem? Sรฃo iguais sabem a quem? Vocรชs sรฃo iguais sabem a quem? รqueles que foram na Roda Viva e espancaram os atores! Vocรชs nรฃo diferem em nada deles, vocรชs nรฃo diferem em nada.โ
A morte do trabalhador informal, estrangeiro sem garantias, negro sem proteรงรฃo, jovem sem futuro viรกvel, (Brasil amado nรฃo porque seja minha pรกtria, Pรกtria รฉ acaso de migraรงรตes e do pรฃo-nosso onde Deus derโฆ) nรฃo provocou das autoridades federais nem um ai, nenhum ui, (Plutocrata sem consciรชncia, Nada porta, terremoto Que a porta de pobre arrombaโฆ). Por outro lado, as redes sociais foram invadidas por ferozes comentรกrios insinuando razรตes atenuantes aos perpetradores da carnificina, afinalโฆย
Na mesma semana, um sargento branco atirou trรชs vezes no vizinhoย de condomรญnio, โpensando que era ladrรฃoโ, quando era โapenas” um trabalhador negro voltando para casa. Antes, hรก poucos dias, o presidente da Repรบblica deixou-se filmar comendo frango com farofa, como quem interpreta uma cena paleolรญtica, um chefe de tribo perdida no tempo, despida de qualquer traรงo de civilizaรงรฃo, um ciclope que nรฃo cultiva e nรฃo cultua e que chama os brasileiros de โninguรฉm”.
Essa cena (e todas essas cenas!) รฉ o nosso Abaporu; o chefe da Naรงรฃo รฉ o nosso Macunaรญma, apรณs cem anos de ilusรฃo, o sรญmbolo dos brasileiros sem carรกter algum, cujos filhos bradam, julgando-se modernรญssimos:ย
- “Meu pai foi rei!”- “Foi!”
– “Nรฃo foi!” – “Foi!” – “Nรฃo foi!”.
*Daniel Medeiros รฉ doutor em Educaรงรฃo Histรณrica e professor no Curso Positivo.
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