Busca

Daniel Medeiros*

 

Eu nรฃo procuro, acho (Pablo Picasso)

Nunca quis a felicidade como um fim planejado, entretanto, ocorreu-me em muitos dias uma alegria de especial candura e sem razรฃo concreta. Nunca busquei o amor como um prรชmio cobiรงado, mas, vรกrias vezes, meus olhos empurraram minha cabeรงa para direรงรตes propรญcias nas quais se encontravam outros olhos que me impregnaram, encheram-me a ponto de nรฃo conseguir dar mais um passo que nรฃo fosse na direรงรฃo desse olhar onรญrico que depois ganhou o nome – por algum tempo, por muito tempo – de โ€œmeu amorโ€.ย 

Jamais me dispus a sentir raiva a priori, e, quando quis, fracassei, embora ainda me assuste com as explosรตes vulcรขnicas de meu espรญrito – que contenho com muito custo, deixando escapar, envergonhado, lava e fumaรงa – sem que eu consiga precisar o tremor sรญsmico que a tenha antecedido.

O que me atravessa o corpo, ร s vezes, jรก de manhรฃzinha,ย  quando estranho aquele rosto, vincado no espelho que sei ser o meu, mas, com o qual nรฃo me acostumo, nรฃo tem propriamente um nome, ou melhor, nรฃo encontro uma palavra definitiva para ele e, por isso, chamo a sensaรงรฃo que me acomete de โ€œcalafrio” e o seu efeito – o vazio na boca do estรดmago – de โ€œangรบstiaโ€. Se no resto do dia esqueรงo รฉ porque me distraio, mirando os objetos que se apresentam ao meu desejo e tentando me transformar neles: trabalho, consumo, lazer. Atรฉ que, em um ponto qualquer da cidade, em uma hora qualquer do dia, dou-me de cara outra vez com o personagem que costuma se chamar de โ€œeuโ€.

Nunca quis ser uma pessoa realizada, e essa รฉ, para mim, a palavra mais esquisita de todas. Jamais consegui capturar seu sentido, nem mesmo pelas bordas. O que me tornaria real e definitivo? Talvez isso aconteรงa somente quando eu for um corpo inerte, passado. Mas mesmo aรญ, outro movimento ocorrerรก, o do meu desaparecimento, sem meu รกlibi ou consentimento. Enquanto escrevo essas palavras, sei que me esgueiro e sou e estou em vรกrios lugares alรฉm daqui, e o que digo รฉ um registro de um outro tempo, longรญnquo, ou algo que sรณ farรก algum sentido muito alรฉm desse texto, quando uma pessoa qualquer ler (terei eu esse leitor atento?) e sentir o meu calafrio em seu prรณprio corpo. O meu nรฃo, o dela prรณpria. Ou o nosso, pois talvez o calafrio nรฃo tenha dono nem preferรชncia de morada.

Sรณcrates, o filรณsofo grego, sofreu por saber demais que sabia de menos. Entendia que nรฃo querer saber era o mesmo que estar morto. No entanto, nรฃo hรก um espaรงo prรณprio em que o saber se localiza, apenas um corpo que se prepara em atenรงรฃo e sensibilidade para reconhecรช-lo a qualquer momento e em qualquer lugar, para desfrutรก-lo nos segundos do encontro que รฉ como um nรณ, comeรงo e fim no mesmo instante. Viver, parece-me, รฉ estar pronto para esse acaso, evitando o risco sempre presente de nรฃo reconhecรช-lo quando ele dobra uma esquina ou esbarra em seu ombro em meio ร  multidรฃo indiferente. ร‰ isso o que eu acho. Eu acho.

*Daniel Medeiros รฉ doutor em Educaรงรฃo Histรณrica e professor de Humanidades no Curso Positivo.
daniemedeiros.articulista@gmail.com
@profdanielmedeiros

**Artigos de opiniรฃo assinados nรฃo reproduzem, necessariamente, a opiniรฃo do Curso Positivo.

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