Daniel Medeiros*
Para Thomas Hobbes, filรณsofo do sรฉculo XVII e um dos precursores da teoria contratualista, a liberdade รฉ uma expressรฃo intrรญnsecaย da natureza humana. Liberdade รฉ a forรงa que provoca um movimento ininterrupto, que ignora obstรกculos e visa apenas a si mesma. A inspiraรงรฃo do pensador inglรชs para configurar esse atributo da liberdade foi a teoria atomรญstica dos gregos antigos, como Demรณcrito e Leucipo e depois Epicuro: os corpos naturais movimentam-se sem razรฃo nem finalidade, exceto a de simplesmente mover-se. Isto รฉ, existem para satisfazerem seus impulsos internos. Assim tambรฉm seria com os homens.
Com a sedentarizaรงรฃo e a formaรงรฃo dos primeiros agrupamentos humanos, o surgimento de um contrato social teria sido a consequรชncia inevitรกvel dos inรบmeros problemas produzidos por esse individualismo exacerbado no seio da comunidade. Afinal, toda vez que uma pessoa exercia sua liberdade e outra pessoa prรณxima a ela tambรฉm queria exercรช-la, havia um choque que envolvia um risco. E o risco – do prejuรญzo material, da dor e da morte – despertou nos indivรญduos a Razรฃo, isto รฉ, a capacidade de articular aรงรตes para alรฉm dos seus instintos. Ficava claro que em uma comunidade, a liberdade como fundamento ilimitado era um perigo real para todos e โo homem tornava-se lobo do prรณprio homemโ. Nada sobreviveria em um ambiente assim. Qualquer projeto que se estendesse no tempo estaria condenado a ser destruรญdo: comรฉrcio, agricultura, indรบstria, nada prosperaria onde o instinto dominasse e a Razรฃo nรฃo estabelecesse regras de convivรชncia. A separaรงรฃo entre a natureza humana e a civilizaรงรฃo conheceu, na liberdade, seu primeiro desafio: como preservar sua vitalidade – que define um indivรญduo – sem permitir que seus excessos inviabilizassem qualquer projeto coletivo – o que define uma sociedade. A saรญda foi criar um corpo artificial, o Estado, com regras a serem obedecidas por todos. E a principal regraย seria a contenรงรฃo de parte dessa liberdade diante do outro. Obedecida por todos, terรญamos entรฃo um espaรงo de convivรชncia possรญvel para a sobrevivรชncia comum. Desobedecida, a violรชncia voltaria com tudo e contra todos.
Freud, em sua obra “O mal estar na culturaโ, de 1929, retoma esse dilema civilizatรณrio, descrevendo-o: Essa substituiรงรฃo do poder do indivรญduo pelo da comunidade รฉ o passo cultural decisivo. Sua essรชncia consiste em que os membros da comunidade limitem-se em suas possibilidades de satisfaรงรฃo, enquanto o indivรญduo antes nรฃo conhecia nenhuma barreira como essa. A prรณxima exigรชncia cultural รฉ, portanto, a da justiรงa, isto รฉ, a garantia de que, uma vez que passe a existir a ordem de direito, ela nรฃo seja novamente infringida em favor de um indivรญduo.
Logo, fica claro para esses autores, que a Liberdade รฉ um componente da natureza humana e, como tal, indissociado da sua existรชncia. Por outro lado, seu exercรญcio pleno รฉ a matriz da violรชncia em comunidade. O simples querer de um รบnico objeto por duas pessoas, em um ambiente sem regras de controle da liberdade individual, poderia resultar na agressรฃo ou na morte. Sรณ o exercรญcio civilizatรณrio lento e tenaz foi capaz de evitar a inviabilizaรงรฃo da vida em comunidade. Exercรญcio civilizatรณrio que foi se aperfeiรงoando para garantir o mรกximo da liberdade, limitando apenas o que pรตe em risco a integridade fรญsica e moral do outro. Diz Freud: Uma boa parte da luta da humanidade acumula-se ao redor da รบnica tarefa de encontrar um equilรญbrio adequado, isto รฉ, que proporcione felicidade, entre essas reivindicaรงรตes individuais e as reivindicaรงรตes culturais da massa.
A recusa em obedecer os protocolos sanitรกrios de proteรงรฃo coletiva como, por exemplo, o uso ou nรฃo da mรกscara em ambientes pรบblicos; o respeitoย ร s determinaรงรตes judiciais que visam coibir excessos do indivรญduo contra a coletividade, passando pelo controle do que se diz e do que se escreve em relaรงรฃo a outras pessoas ou instituiรงรตes, como as manifestaรงรตes de cunho homofรณbico, racial, misรณginas; as mentiras e manipulaรงรตes conscientes com o propรณsito de induzir a aรงรฃo do outro, todas essas aรงรตes inscrevem-se no รขmbito desse embate entre o exercรญcio de uma liberdade ilimitada voltada para a satisfaรงรฃo individual ou a necessidade do controle social dessa mesma liberdade, em nome da coexistรชncia e da possibilidade mesma de existรชncia social. Ou seja, รฉ a diferenรงa entre a vigรชncia da barbรกrie ou a possibilidade da civilizaรงรฃo. Concluo com a dรบvida levantada por Freud: Um dos problemas do destino da humanidade รฉ saber se esse equilรญbrio pode ser alcanรงado atravรฉs de uma determinada configuraรงรฃo da cultura ou se o conflito รฉ irreconciliรกvel.
Sรณ o tempo – e nossas escolhas e esforรงos comuns – poderรฃo dizer.
*Daniel Medeiros รฉ doutor em Educaรงรฃo Histรณrica e professor no Curso Positivo.
daniemedeiros.articulista@gmail.com
@profdanielmedeiros