Início Colunas e Artigos Artigos A persistência da vulnerabilidade da população LGBTQIA+ no Brasil

A persistência da vulnerabilidade da população LGBTQIA+ no Brasil

0

Valéria Pilão[i]

Há quem diga que a sociedade brasileira tem avançado no que diz respeito à garantia de direitos à população LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queer, Intersexuais, Assexuais e outros grupos e variações de sexualidade e identidade de gênero). Um dos motivos que justificam essa afirmação é o aumento do número de homens e mulheres que expõem o rompimento com os padrões heteronormativos de relacionamento e comportamento. Também corrobora para tal argumentação de possível avanço na sociedade brasileira o fato de que em ambientes corporativos ou estabelecimentos comerciais têm se desenvolvido políticas de compliance e de contratação de profissionais originários desse grupo vulnerável. Ainda deve ser acrescentado, compondo a argumentação, o fato de que, em 2019, o Supremo Tribunal Federal criminalizou as práticas homofóbicas e a transfóbicas, equiparando-as ao racismo (Lei n.º 7.716/89) bem como, em decisão de 2011, reconheceu a constitucionalidade da união entre pessoas do mesmo sexo.

 

As políticas nas empresas (em geral grandes corporações) e a alteração da compreensão jurídica no Brasil são argumentos muito potentes, mas, infelizmente, tais transformações ou ações não minimizaram a violência que a população LGBTQIA+ brasileira está sujeita cotidianamente. Pelo contrário, observa-se o crescimento no número de atos contra esse grupo, como atesta o “Relatório 2021 – Mortes Violentas de LGBT+ no Brasil” produzido pelo Grupo Gay da Bahia (GGB). O estudo é categórico ao afirmar que “o Brasil continua sendo o país do mundo onde mais LGBT são assassinados: uma morte a cada 29 horas”.

 

É necessário indagar a que se deve a aparente contradição entre os supostos avanços nas garantias da população LGBT ao mesmo tempo em que o Brasil é o país onde esse grupo experiencia situações de extrema vulnerabilidade. Possíveis respostas a essa pergunta não se encontram na imediaticidade das relações sociais; faz-se necessário realizar mediações para compreender o lugar histórico e ao mesmo tempo estrutural que os grupos marginais (gays, lésbicas, negros, indígenas etc.) possuem no Brasil.

 

A estrutura patriarcal contribui de maneira fundamental, deixando sua marca, para o estabelecimento das relações com o outro que não seja o homem branco, hetero e proprietário. A violência é constitutiva dessa formação bem como dessas relações. O passado escravocrata, machista e autoritário se faz presente, ainda que, institucional e formalmente, o Estado brasileiro adira aos documentos dos organismos internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização dos Estados Americanos (OEA) ou, ainda, assegure em sua Constituição a igualdade de todos assim como a necessidade de construir uma sociedade “livre, justa e solidária”.

 

A respeito da incorporação dos valores positivos assinalados acima, como o da valorização à pessoa humana observado em algumas empresas bem como nas decisões judiciais alinhadas à valorização da diversidade, a análise do sociólogo Florestan Fernandes sobre a construção da sociedade brasileira oferece ferramentas importantes para a análise. No que diz respeito à construção do capitalismo brasileiro, que qualifica como dependente, o referido pesquisador aponta que aqui o caráter heteronômico de sua estrutura implica na incorporação por parte das instituições de demandas e valores que são externos à sociedade brasileira. Na mesma linha, a pesquisadora e socióloga Heleieth Saffioti tem frase exemplar para explicar tal processo: “[…] a importação de ideias e ideais conduziu, não raro, o legislador brasileiro a tornar o fenômeno jurídico mais dinâmico que certos fatos infraestruturais”. Ou seja, ambos investigadores apontam para o fato de que no Brasil a formalidade é a regra, pois os avanços jurídicos e/ou institucionais ocorrem de maneira concomitante à manutenção de estruturas sociais e culturais conservadoras.

 

Nesse sentido, não há contradição no avanço de alguns segmentos empresariais (principalmente, grandes corporações) nem em decisões do sistema jurídico no que diz respeito aos direitos à população LGBTQIA+ com a permanência de formas de violência a esse grupo social, pois não há nenhuma transformação social de fundo que rompesse com a estrutura patriarcal.

 

Na sociedade contemporânea, os assassinatos por homofobia e transfobia são as expressões mais violentas dessas relações desiguais e lembram a todos os que se vinculam a esse grupo vulnerável que sua vida corre perigo simplesmente por não ser aquilo que os outros desejam. Dessa forma, o enfrentamento a essas violências efetivamente ocorrerá a partir do reconhecimento e da superação das estruturas arcaicas da sociedade brasileira.

 

*Valéria Pilão é doutora em Ciências Sociais (UNESP/Marília). Mestra em Sociologia (UFPR). Bacharela e licenciada em Ciências Sociais (UNESP/Marília). Professora do Centro Universitário Internacional Uninter.

SEM COMENTÁRIOS

Sair da versão mobile