Os maus encontros

Daniel Medeiros*

 

O filรณsofo holandรชs do sรฉculo XVII, Baruch Spinoza, ensina que nosso corpo reage ao ser afetado pelos bons encontros, ampliando sua alegria, seu desejo de Ser. Por outro lado, a tristeza รฉ o resultado de como o nosso corpo รฉ afetado pelos maus encontros. Ou, como ele mesmo diz, em sua ร‰tica: โ€œPor afeto compreendo as afecรงรตes do corpo, pelas quais sua potรชncia de agir รฉ aumentada ou diminuรญda, estimulada ou refreada.โ€

Nรฃo hรก como evitar os encontros, pois somos um corpo entre corpos que formam todas as coisas materiais do Universo, mas รฉ possรญvel dirigirmos nossa atenรงรฃo para os encontros que estimulem nossa vontade de expansรฃo. Por isso, a regra importante de uma vida marcada mais pela alegria do que pela tristeza รฉ prestar atenรงรฃo. Uma vida sem atenรงรฃo รฉ um risco muito grande. Diante de quem nos diminui e entristece, รฉ preciso desviar o rumo, mudar de lado da calรงada, evitar aproximaรงรฃo. Nรฃo se trata de querer mal, mas de nรฃo querer mais, como lembra o cancioneiro popular. As paixรตes tristes sรฃo o perigo da existรชncia interessante, expansiva e singular que todos nรณs podemos usufruir.

Nosso corpo pode afetar e ser afetado pelo mundo ร  nossa volta. ร‰ isso que ele faz. Se uma forรงa muito grande nos atinge, desagregamo-nos e deixamos de existir como um corpo. ร‰ como Spinoza chama a morte. Outros encontros nรฃo tรชm esse poder desagregador, mas sรฃo capazes de diminuir nossa potรชncia de existir a um nรญvel de quase imobilidade. Quando a tristeza vira melancolia, entรฃo, a vontade de agir praticamente desaparece e o de Ser e Existir tambรฉm. Perigo mortal. A saรญda, para o filรณsofo, รฉ evitar os maus encontros. ร‰ fato que nem todos os maus encontros sรฃo evitรกveis, mas รฉ possรญvel aprender com seus efeitos e tentar desviar quando eles surgirem no horizonte. Somos movidos pelo desejo de bons encontros, que ativam nossa potรชncia, que รฉ a vontade de expansรฃo. Essa vontade, quando se torna uma ideia trabalhada pela mente, que รฉ atenta e รฉ analรญtica, tem a chance de se repetir e se multiplicar. Logo, a maior parte dos maus encontros รฉ fruto da distraรงรฃo e da irreflexรฃo que sรฃo, em รบltima instรขncia, um desperdรญcio das chances de bem viver.ย 

Ninguรฉm pode ser neutro, estar fora do mundo e escolher nรฃo ser afetado por nada ou ser afetado sรณ por isso ou aquilo. Essa ideia รฉ uma grande besteira. Somos o resultado do conjunto de afetos alegres e tristes, e da nossa capacidade de pensar sobre eles e direcionar nossa potรชncia para uns e nรฃo para outros. Embora haja quem viva tirando algum motivo da negaรงรฃo, outros entendem que viver รฉ afirmar, รฉ buscar encontros que ampliam a presenรงa do Ser no mundo. Nietzsche, que lia Spinoza e foi muito influenciado por ele, vai imaginar o seu Alรฉm Homem como aquele que โ€œdiz Simโ€, que afirma a vida como um campo de possibilidades de crescimento e Alegria, em vez de negar, restringir e, alรฉm disso, culpabilizar os outros. โ€œEu sofro: alguรฉm deve ser culpado por issoโ€, diz Nietzsche sobre os ressentidos.

Muito da nossa crise contemporรขnea passa pela incapacidade de algumas pessoas de admitir o modo de viver de outras e de culpรก-las pelo que fazem e pelo que a levam a fazer por causa daquilo que fazem. Como diz a psicanalista Maria Rita Khel: โ€œRessentir-se significa atribuir ao outro aย responsabilidadeย pelo o que nos faz sofrer. Um outro a quem delegamos, em um momento anterior, o poder de decidir por nรณs, de modo a poder culpรก-lo do que venha a fracassar.โ€

Nรฃo tenho nenhuma pretensรฃo de me alongar aqui, o que implicaria precisar esses conceitos. Termino retomando a ideia inicial do pensador holandรชs, que poderia ser assim formulada: sofrer nรฃo รฉ uma opรงรฃo necessariamente inevitรกvel, pelo menos o tempo todo. Isso serve para os indivรญduos e serve para os grupos sociais. Nรฃo precisamos imaginar que a vida seja sempre negar os desejos e os encontros e menos ainda demonizรก-los como se existisse uma essรชncia, um sumo, resultado dessa negaรงรฃo, que tivesse um valor transcendental. Para Spinoza, nรฃo hรก sequer transcendรชncia. Somos todos a manifestaรงรฃo de uma รบnica Substรขncia e tudo o que รฉ sรฃo apenas modos distintos dessa manifestaรงรฃo. Nรฃo hรก um โ€œforaโ€ disso. Tudo รฉ isso que estรก aรญ. Faรงamos o melhor do que temos ร  disposiรงรฃo. Se รฉ possรญvel imaginar essa descriรงรฃo da Natureza e acreditar nela, entรฃo vale a pena o esforรงo de pensar sobre a importรขncia de nรฃo perder tempo com maus encontros. A nossa vidaย  – e a dos outros – certamente pode ser muito melhor.

*Daniel Medeiros รฉ doutor em Educaรงรฃo Histรณrica e professor de Humanidades no Curso Positivo.
daniemedeiros.articulista@gmail.com
@profdanielmedeiros

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