O Qatar, a Copa e a kafala: um legado de violações

João Alfredo Lopes Nyegray*

 

O Qatar é um pequeno país do Oriente Médio, com população total de aproximadamente 3 milhões de pessoas. Dessas, apenas cerca de 10% são nativos. Apesar de ser um dos países mais ricos do mundo, e com o terceiro IDH mais elevado do mundo árabe, recaem sobre a Monarquia Absoluta do Emir Tamim bin Hamad Al Thani pesadas acusações de violações de Direitos Humanos, em especial na construção dos estádios que receberão a Copa do Mundo Fifa 2022.

Tendo vencido o pleito para sediar o torneio em 2010, as acusações de violação de Direitos Humanos iniciaram-se ainda naquele ano. Ao que se sabe, pelo menos 20 mil trabalhadores foram utilizados na construção civil para as obras do torneio. Segundo o “The Guardian”, mais de 6.500 trabalhadores morreram desde o início das obras para a construção de toda a infraestrutura padrão Fifa. A imensa maioria desses trabalhadores são imigrantes.

Enquanto o Qatar atrai investimentos bilionários, viola uma dezena de tratados e acordos internacionais, como a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966, além da Convenção sobre a Abolição do Trabalho Forçado, da Organização Internacional do Trabalho.

É uma aberração que, em pleno século XXI, seja ainda necessário lutar e combater a escravidão. O que ocorreu com muitos dos trabalhadores atraídos pelas obras da Copa do Mundo de 2022 é o que segue ocorrendo em várias regiões do mundo: a escravidão moderna. No caso do Qatar há também a “kafala”. Trata-se de um sistema em que o empregado necessita de um patrocinador no país de destino – normalmente o patrão. A troca de emprego só é possível quando o patrão assina uma recomendação autorizando a mudança. Embora oficialmente o Qatar tenha abolido essa regra, a Anistia Internacional afirma que a kafala segue ocorrendo. A kafala motivou inúmeros protestos pelo mundo para que o Qatar perdesse o direito de realizar o torneio. A Fifa diz investigar a situação, e, enquanto isso, as obras seguiram seu curso.

Na edição 148, a revista Humanitas trouxe o dado de que em 1700 vieram para o Brasil cerca de 85 mil escravos. Hoje não sabemos ao certo quantas pessoas vivem em regime de escravidão ou situação análoga, mas certamente é um número muito maior do que era no passado – mesmo quando a escravidão era permitida. O que se sabe é que ocorre em uma centena de áreas além da construção civil, como os setores têxtil, industrial e agrícola. A prática da escravidão constitui não apenas um dos mais nefastos períodos de nossa história, como sua continuidade demonstra que pouco aprendemos com o passado, ou que pouco nos solidarizamos com as dores do outro no presente. É ilusão acreditar que isso só existe na Ásia, na África ou em lugares distantes. O caso de Madalena Gordiano, libertada em 2020 após 38 anos vivendo em situação análoga à escravidão, nos prova que a escravidão pode estar ocorrendo ao nosso lado sem que nos demos conta.

O questionamento que se deve fazer é: até quando essas violações serão toleradas? O século XX nos trouxe incontáveis conflitos, guerras e genocídios. Na sequência, vários instrumentos internacionais foram criados – seja para a preservação da paz ou para assegurar uma vida humana digna. Ao que parece, nada disso foi capaz de nos ensinar os benefícios da paz ou a importância da alteridade. As denúncias que pesam sobre o Qatar, e o assombroso número de trabalhadores mortos mostram que não bastam instrumentos, tratados ou convenções, quando falta vontade. Por um mundo onde tenhamos Direitos Humanos e Negócios padrão Fifa.

*João Alfredo Lopes Nyegray, doutorando em estratégia, coordenador do curso de Comércio Exterior e professor de Geopolítica e Negócios Internacionais na Universidade Positivo (UP).

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