A (re)criação do mundo

Daniel Medeiros*

 

No primeiro dia, andou pelo centro e distribuiu moedas para os meninos em andrajos, para as senhoras com pés gastos em chinelos rotos, para os homens com placas de papelão nas mãos e olhares baixos, nas esquinas, diante dos automóveis surdos. Passou pelas lojas com produtos coloridos e viu pequenos monturos sob suas fachadas coruscantes. Em um, inadvertidamente, quase tropeçou e notou o leve movimento dos cobertores e do colchão finíssimo e manchado até o momento em que uma cabeça desgrenhada, com olhos enormes e vermelhos, saiu do casulo e olhou para o nada. Ele já ia longe, envergonhado por não ter pedido desculpas.

No segundo dia, bem de manhãzinha, acordou e foi à periferia da grande cidade que se vendia como modelo e como melhor destino para investir e para morar. Chovia. Mal conseguiu ficar de pé nas vielas encardidas e no chão de barro batido. Das pequenas janelas de alumínio ou de madeira, ouvia-se o som de muitas vozes, amontoadas nos cubículos. A luz dos poucos postes ainda estava acesa por causa do dia cinza. Os fios se amontoavam no topo dos postes como um novelo de lã e muitos fios sem pontas pendiam quase até o chão. Algumas pessoas passavam, apressadas pela chuva, em sombrinhas destrambelhadas. O comércio local começava a abrir suas portas cheias de cadeados. Parecia que ninguém queria começar o dia, aquele dia, nenhum dia mais.

No terceiro dia, foi a uma ocupação e ficou pouco por lá, porque não estava se sentindo bem. Uma mulher que morava em uma barraca de plásticos pretos, papelão de caixas de supermercados e ripas de madeira arrancadas a uma cerca qualquer, notou-o e ofereceu ajuda. Ele olhou demoradamente para ela e balbuciou um agradecimento. Ela sumiu por um momento, voltou com um copo de água e uma banana. Julgou que fosse sede ou fome. Ele recusou a banana e bebeu água sem deixar de pensar na sua procedência. Pela segunda vez, naqueles primeiros dias, sentiu vergonha de si mesmo.

No quarto e quinto dias, ele viajou pelo país, indo ao interior de vários estados, dos lugares quentes e secos aos úmidos e verdes e também às pequenas cidades dos morros e aos balneários de lindos mares verdes de águas mornas. Conversou com as pessoas sentadas nos bancos das praças com velhos coretos sem uso ou nas escadarias que levavam para as igrejas pintadas de salmão ou pêssego, ou verde-claro ou azul da cor da Virgem. Mulheres com o rosto coberto e o rosário na mão passavam pelos pedintes como se eles fossem manchas nos muros, garatujas nas paredes descascadas pelo tempo e pela umidade. Ouviu conversas nos sítios e fazendas, nas áreas de plantação, nos amplos currais, próximos aos criadouros de peixes, homens e mulheres trabalhando, produzindo, orgulhosos e desconfiados, com um olhar duro no rosto, um temor dos outros, do tempo, de tudo. Também não se quedou muito por ali; era visto com desconfiança, um certo ressentimento de suas roupas puídas e suas sandálias gastas. Logo apareceu um guarda, dois, três, perguntando o que fazia ali, de onde tinha vindo, quanto tempo iria ficar. Baixou a cabeça, murmurou respostas e foi embora. Outra vez sentiu vergonha. Mas, desta vez, não foi de si.

No sexto dia, conheceu a terra dos índios e dos quilombolas, e chorou com eles. Viu as matas derrubadas, os rios leitosos e os peixes com as barrigas para cima. Ouviu o silêncio triste da ausência dos bichos na mata. Ali havia um temor que não era o da desconfiança, mas o do desamparo. Uma esperança havia perecido naquelas terras, a fertilidade do amanhã agora não passava de uma lembrança de outros tempos, de um tempo imaginado que haveria se a floresta ficasse de pé, os ares protegidos, os bichos, as gentes que ali viviam sua vida pacata. 

No sétimo dia, a decisão estava tomada. Pôs sua melhor roupa, pegou seus documentos e foi para a escola. Chegou lá e o movimento já era grande. Procurou sua seção, esperou alguns minutos, uma estranha ansiedade apertando o seu peito. Chegou sua vez, identificou-se, a moça simpática na pequena mesa escolar indicou-lhe a cabine. E ele escolheu, apertando a tecla verde com uma alegria infantil.

*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor de Humanidades no Curso Positivo.
@profdanielmedeiros

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