Enzo Kalinke*
Brasil, nossa casa, com a célebre história de um país descoberto pelos portugueses por acidente, e declarado independente com um heroico grito às margens do Rio Ipiranga. Em nossa história temos ainda fatos muito interessantes, tais como a figura de uma princesa que, no auge de sua bondade, decreta o fim da escravidão ou a figura de um “presidente” que tem um governo legitimado de 15 anos, sem eleições diretas no período. Conectando alguns fatos, apresentam-se a nós coincidências históricas bastante curiosas, as quais são pistas da história de nossa Nação. Aprendemos desde pequenos que três caravelas que viajavam em direção às Índias se perderam e acabaram por aportar onde hoje é o Brasil. Desde esse momento, seríamos então uma colônia portuguesa.
Considero os portugueses dotados de muita sorte, segundo essa história. Afinal, exatamente as três caravelas mais importantes de toda a caravana, as quais continham representantes dos reis e patrocinadores das navegações, também padres e navegadores experientes, acabaram por se perder, enquanto as que continham os viajantes menos importantes na hierarquia, seguiram o rumo previsto. A sorte de nossos amigos saídos da Europa torna-se ainda maior ao terem aportado em terras que haviam sido objeto de conflito entre portugueses e espanhóis seis anos antes dessa “descoberta”, e já seriam, de acordo com o Tratado de Tordesilhas, terras portuguesas. Isso nos leva a questionar se teria sido a viagem de Cabral uma descoberta ou uma tomada de posse.
Após todas estas coincidências que trouxeram nossos colonizadores portugueses ao Brasil, nos tornamos subordinados à Coroa Portuguesa, até o momento em que Dom Pedro I bravamente levantou sua espada e bradou “Independência ou morte”, às margens do Rio Ipiranga, sendo assim, um herói libertador de nossa história. Essa versão ficou eternizada na famosa pintura de Pedro Américo. Seria então o “pai de nossa pátria” um português, membro da casa de Bragança, que teria tido a coragem, inspirado em ideais liberais, para nos fazer independentes? Ou seria apenas um português que decidiu nossa independência sem participação das camadas mais populares da população, em um processo formado e apoiado pelas elites, o qual teria apenas dado continuidade ao controle de Portugal em terras tupiniquins, agora com uma nova roupagem e novos símbolos?
Seguimos nossa abordagem falando sobre a Princesa Isabel, uma governante que teria usado sua bondade de princesa para abolir a escravidão. De fato, temos relatos que a mostram mais engajada em causas sociais, quando comparada com outros que ocuparam seu cargo. Porém, a bondade não seria suficiente para uma decisão de tal calibre. A princesa era, acima de tudo, uma política, que estava acompanhando três fatores de extrema importância: uma série de revoltas dos escravizados, os quais buscavam lutar por sua liberdade com as armas que tinham; a pressão externa, realizada por outras nações, as quais já haviam declarado o fim da escravidão; e as ideias iluministas presentes nas sociedades europeias. Sou levado a pensar que a política acabou por ter mais influência na decisão de nossa princesa, do que, de fato, sua bondade.
Passaram-se décadas, a República foi proclamada em nossa nação e seguiu-se a lógica de poder, até que um presidente gaúcho tomou posse em um contexto conturbado. Getúlio Vargas está no imaginário de muitos brasileiros como o presidente “pai dos pobres”. De fato, Vargas merece a alcunha por algumas de suas realizações, como a criação da famosa Consolidação das Leis Trabalhistas, a qual garantiu direitos hoje, para os brasileiros, considerados como básicos aos trabalhadores. Porém, seria ele apenas um benfeitor? Poucos sabem que nosso então presidente era chamado também de “mãe dos ricos” e tornou-se um ditador civil, tomando medidas como a censura de meios de comunicação. Especula-se também seu envolvimento em atos violentos contra sua oposição.
De fato, nossa história é cercada por pontos de vista não tão límpidos. Na segunda metade do último século, existiu um esforço governamental para a criação de uma história nacional mais forte, buscando uma versão histórica que fosse capaz de fortalecer nossos vínculos como nação. Surge desse período, por exemplo, a figura de Tiradentes, criada à semelhança de Jesus Cristo, como um herói nacional e o célebre rosto da luta contra nossos até então colonizadores.
A história é contada ao longo dos anos a partir de interesses, expectativas e pontos de vista diversos. Ao serem confrontadas, algumas destas versões parecem cercadas por fatos pouco explicados ou coincidências que nos levam a questionamentos. Não raramente, escolhemos as versões que fortalecem nosso sentimento nacionalista.
É importante considerarmos, contudo, que a história se forma por um conhecimento vivo, em construção e que se modifica a partir de novas compreensões, documentos, interpretações e fatos que antes eram desconhecidos. Os fatos aqui apresentados, entretanto, não visam diminuir ou menosprezar nossa história. Pelo contrário, objetivam mostrar que ela talvez seja ainda mais que aquela que nos foi contada por muito tempo.
*Enzo Kalinke, especialista em Educação Internacional, é professor de História do Colégio Positivo.