Daniel Medeiros*
Saí do cinema engasgado e tive de sentar no banco do shopping para recuperar o fôlego. Tinha um jantar com amigos logo na sequência e precisava saber se conseguiria dar esse salto de volta para o cotidiano assim tão prontamente. O filme havia me atingido como o susto de um carro que freia diante de você, a centímetros de seus joelhos. Eu precisava saber o porquê dessa reação, embora desconfiasse que seria uma tarefa sem muita utilidade ou fim satisfatório. Não há como saber objetivamente por que uma narrativa mexe com as cordas internas do nosso corpo, desequilibrando-o, deixando um gosto ruim na boca, um peso no estômago, uma perda de energia quase no limite do desfalecimento. A melhor saída é sentar e esperar. Pouco a pouco, o sistema volta a operar, você enxuga a furtiva gota de suor que escorre da testa, levanta-se e segue com sua rotina. Resta uma espécie de fantasma que enevoa ainda um pouco a vista, lapsos muito rápidos que causam um breve enjoo, até que cessa de vez. Aos amigos, você diz, entre uma taça de vinho e uma garfada no rigatoni ai frutti di mare: “Hoje vi um filme ótimo, vocês vão gostar.”
A baleia de Ahab é a personificação da sua inquietude e do seu deslocamento em relação a si mesmo. Como diz o personagem: “É o meu jeito de afastar a melancolia e regular a circulação. Sempre que começo a ficar rabugento; sempre que há um novembro úmido e chuvoso em minha alma; sempre que, sem querer, me vejo parado diante de agências funerárias, ou acompanhando todos os funerais que encontro (…) então percebo que é hora de ir o mais rápido possível para o mar.”
A baleia de Charlie é a busca de sua redenção impossível, na forma de uma redação escrita pela filha, aos oito anos, prova de seu talento e criatividade. Ahab e Charlie são consumidos por uma culpa: em Ahab, a culpa não tem nome; em Charlie, trata-se do amor por outro homem e o abandono da filha. Em Ahab, os demônios são internos e ele os personifica no grande cachalote; em Charlie, os demônios são as convenções que definem o “amor verdadeiro” e o confinam sob um peso insuportável. Ambos protagonizam uma tragédia inevitável: a destruição do corpo como forma última de se livrar do objeto de sofrimento, naufragando abraçado a ele. Ambos agarram-se à baleia e deixam-se ser arrastados para o fundo do mar (ou para o ar), não suportando a fúria de seus próprios sentimentos.
Nas duas histórias, uma tábua de salvação é o relato de Ismael, é a redação da filha desesperadamente rebelde, é a disposição dos estudantes do curso de escrita criativa. A palavra que torna o evento em reflexão é o Jonas bíblico que, mesmo tomado de medo e sentindo-se incapaz da tarefa que D’us havia lhe ordenado, acaba salvando uma cidade com suas palavras amorosas.
Sempre ri de uma frase do surrealismo fantástico que mostra uma baleia atirando em outra baleia e assassinando-a. A manchete : “Baleia, baleia, baleia.” O nonsense é hilário. Depois de meu susto com o filme, relembrei dessa frase, mas com o significado que busquei nesse texto: Ahab, Charlie, Jonas. Baleia, baleia, baleia. Todos carregamos uma em nossa alma.
*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor de Humanidades no Curso Positivo.
@profdanielmedeiros