O legado da experiência

Daniel Medeiros*

 

No filme “Os Banshees de Inisherin”, um homem conclui que sua vida não poderia ser resumida a sua rotina diária de gestos e horários repetidos e seus contatos sem importância com seus poucos amigos, no bar local da pequena ilha a oeste da Irlanda. Ele percebe, no meio de uma tarde, que precisava deixar algo de si, que o transcendesse, que ultrapassasse seu corpo físico e sua história cotidiana. E que essa “obra” definiria sua vida, dando-lhe uma chance de não ser esquecido pois, com o esquecimento, desapareceria definitivamente, sem qualquer apelo ou consideração.

O que o homem não contava era com a resistência de seu principal amigo, um simplório aldeão que preenchia seus dias com os encontros e com as conversas, mesmo que nessas conversas nada fosse dito sobre quem ele era ou como via o mundo e a vida, mas que se estendia por horas tratando de temas como o que ele havia encontrado nas fezes de seu pônei. Apesar disso, essa fuga da experiência, esse apego ao mesmo – nossa rotina – era o mais próximo que o homem simples entendia por uma vida feliz. E essa vida foi então alterada abruptamente quando seu amigo declarou, sem preparação, que não queria mais aqueles encontros e aquelas conversas, pois precisava dedicar-se a compor uma música, uma música que traduzisse seu eu mais profundo, do qual se encontrava apartado por aquele eterno passar de dias iguais, como vítima de uma droga entorpecedora. 

Enquanto um personagem tentava, as apalpadelas, sair do perímetro do conhecido em busca de novas conexões consigo mesmo, o outro exasperava-se com a ausência dos compromissos conhecidos; enquanto um desejava deixar de ser o que era, outro apavorava-se com o risco de perder o que imaginava defini-lo melhor; enquanto um olhava para além do horizonte, abandonando o espaço pelo tempo, o outro via-se, pela primeira vez, em terra estranha, incapaz de saber o que faria consigo mesmo sem aquele diário ocupar de horas com a presença do outro.

A incompreensão de um pela escolha do outro e a intransigência do outro em relação aos apelos desse fazem irromper outro sentimento que tangencia todos os sentimentos: a violência. A violência é filha da incompreensão e do ressentimento. O fim do meu mundo não pode ocorrer com o nascimento do mundo de ninguém. Só uma coisa apascenta minha dor: inflingir dor ao que me causou esse sofrimento. Interessante que o filme se passe na Irlanda dos anos 20, imersa em uma guerra civil na qual já não havia clareza sobre quem se opunha a quem. Na ilha isolada, os ecos dessa guerra eram sentidos diariamente, com as explosões e a fumaça constante que se ouvia e via no continente. A violência que se sabia estar perto, agora infiltrava-se nas almas dos dois amigos e o desfecho será tanto grave quanto elucidador. 

O homem que queria salvar sua alma, oferece o corpo em sacrifício como prova de sua convicção, buscando convencer o outro. Inadvertidamente, uma parte de seu corpo altera ainda mais radicalmente a rotina do homem simples, matando seu burrinho de estimação, levando-o ao desespero e fazendo irromper sua declaração de guerra. 

O fim da história é emblemático: os dois homens na praia, feridos, abalados, em meio a uma terra e um tempo arrasados pelo redemoinho de violência ao qual aceitaram se submeter. Nesse momento, emerge um terceiro personagem, presença inevitável das tragédias que, desde os gregos, explicitam a incapacidade humana de equilíbrio e  ponderação: a solidão.

*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
@profdanielmedeiros

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