Daniel Medeiros*
O professor é uma ameaça permanente para quem quer impedir que se discuta a realidade e, principalmente, para quem defende que há uma só realidade, aquela que lhe convém, e que qualquer problematização dos termos que a compõem constitui um perigo a ser combatido. O professor é o adulto que propõe às crianças e aos jovens oportunidades de usarem as ferramentas da teoria para construírem visões próprias do mundo, produzindo a realidade. Para muitos, porém, isso é inadmissível, pois implica um questionamento ao que eles consideram certo e único, e é esse certo e único que deve ser ensinado aos seus filhos. Como se os filhos fossem não só carne da carne e sangue do sangue, mas ideia da ideia, crença da crença. A escola, por esse prisma, é um mal necessário que deve ser contida a um círculo mínimo de informações autorizadas, de preferência objetivas e práticas, para manter e perpetuar as coisas, mas nunca duvidar delas e, muito menos, reinventá-las.
O professor, como dizia Hannah Arendt, é aquele que assume a responsabilidade por mostrar o mundo aos mais novos, lembrando-lhes sobre o que julga importante e sobre a tarefa de cuidar, preservar, melhorar e reinventar o que receberão de herança. E fazer isso, que é a função fundamental de quem ensina, não se dá sem que se faça uma abertura a uma questão inescapável: o que vocês sentem com tudo o que veem?
Ser professor não é doutrinar. Ao contrário, é criar espaços para o questionamento do que se vê, alertando sempre que tudo muda, tudo é passível de mudar. Quem doutrina é o religioso, que repete o que está escrito e exige obediência ao que se determinou há séculos e séculos, lembrando que está tudo determinado e que o bom fiel é aquele que segue, como o cordeiro, o seu pastor. Nada é mais contrário a uma escola do que essa ideia, essa visão das coisas.
O avanço da civilização no Ocidente deu-se em torno dessa tensão: obediência à tradição e invenção do novo. Descartes, o pai da ciência moderna, preferiu questionar a si mesmo e ao mundo em vez de seguir os livros e o que os antigos diziam. Deu no que deu. Tivesse agido diferente, e ainda estaríamos na idade média.
Há uma conclusão importante que precisa ser aqui anunciada: o professor nunca age para que as crianças e jovens o sigam. Pelo contrário, o papel do professor não é ensinar pássaros a voar, mas lembrá-los de que nasceram para fazer isso. Um professor que diz o que o aluno deve pensar não ensina nada. Ensina quem ajuda o aluno a pensar. E, para muitos, aí é que está o problema. Um sério problema. Só isso explica afirmar que os professores doutrinam, incutindo a discórdia entre filhos e pais, e que isso seria uma estratégia do comunismo cultural para acabar com a família. Por isso, afirmam que os professores são mais perigosos que os traficantes e que é preciso tratá-los como tais. Recentemente isso foi dito em uma manifestação de apoio às armas. Lembremos: muitos dos que apoiam a liberdade para a aquisição e o uso das armas têm como principal argumento o direito de defesa contra os bandidos. Ora, seguindo a “lógica” desse discurso , não há “bandido” mais perigoso do que o professor que estimula crianças e jovens a se voltarem contra a autoridade de seus pais, criticando suas tradições e crenças. Conclusão: todos devem se defender contra isso, usando as armas que têm. Inclusive as de verdade?
Estamos diante de um ataque de cães em meio a um descampado, sem ajuda à vista. E o que devemos fazer? Não tenho dúvida: continuar a esclarecer, ajudar a compreender, problematizar e questionar a realidade, as fontes, as afirmações, os fatos. O papel do professor sempre foi cercado de perigos e, apesar disso, nunca deixamos de fazer nosso trabalho, que é o de mostrar o que é o mundo, o que há no mundo e o papel das crianças e jovens como herdeiros desse enorme patrimônio, para que sejam responsáveis pelo que farão com ele. E o que há de mais importante no mundo para ser cuidado é a Liberdade, essa invenção frágil e poderosa, como o fogo dos primeiros homens, única capaz de nos livrar da escuridão dos ignorantes e dos dentes afiados de seus cães.
*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor de Humanidades no Curso Positivo.
@profdanielmedeiros