Daniel Medeiros*
O presidente da Academia Brasileira de Letras declarou recentemente que nรฃo รฉ hora de alterar a lรญngua portuguesa para incluir a linguagem neutra. Essa notรญcia rapidamente repercutiu, e houve quem comemorasse o pronunciamento como uma vitรณria do โcerto” sobreย o โerrado”.
Jรก eu fiquei matutando sobre o assunto. Toda vez que ouรงo alguรฉm falar, compreendo e concluo que essa pessoa estรก utilizando uma lรญngua semelhante ร minha. Da mesma forma, quando ouรงo vรกrios termos e expressรตes, sejam gรญrias ou palavras perdidas do dicionรกrio, que nรฃo entendo, reconheรงo que tambรฉm faz parte da minha lรญngua. Sei que o acadรชmico quis se referir ao que chamamos de padrรฃo oficial da lรญngua, aquele conjunto de regras que dรฃo uniformidade a textos que precisam do mรกximo de clareza e precisรฃo. Ou o que os mais vetustos chamam de norma culta. Faz sentido, principalmente porque ele teve o cuidado de nรฃo condenar nada, mas apenas de sugerir prudรชncia com o tema.
Uma das razรตes que o presidente da ABL usou para afastar a hipรณtese de alterar, neste momento, a norma oficial para incluir a linguagem neutra, รฉ que existem linguagens especรญficas em รกreas como Medicina,ย Direito e Ciรชncias Naturais, com termos tรฉcnicos e jargรตes prรณprios. Sabemos que nada รฉ mais chato do que um advogado falando โadvoguรชsโ com quem nรฃo รฉ advogado, ou um mรฉdico explicando a doenรงa em termos tรฉcnicos para quem sรณ quer saber como se livrar da dor. Mas, tudo bem, parece que aqui nรฃo hรก, digamos, um clamor popular de contestaรงรฃo. No entanto, a questรฃo, se levarmos em consideraรงรฃo o argumento do acadรชmico, รฉ bem parecida.
Quando falamos para um pรบblico amplo e diverso, como faรงo todos os dias, por exemplo, รฉ preciso escolher as palavras mais amigรกveis. Quando isso nรฃo รฉ possรญvel, procurar explicรก-las para que se tornem um presente para quem ouve, mas um presente que se possa usar. Da mesma forma, dirigir-se a um pรบblico amplo implica tambรฉm saber que todos sรฃo indivรญduos que, por acaso, estรฃo reunidos e possuem particularidades que precisam ser vistas, compreendidas e respeitadas. Quando hรก homens e mulheres, quando hรก homens, mulheres e crianรงas, quando hรก jovens e idosos, quando hรก brancos, pretos e indรญgenas, quando hรก pessoas saudรกveis e pessoas doentes, quando hรก pessoas catรณlicas e pessoas judias, sempre, para quem fala, รฉ um desafio de adequaรงรฃo para nรฃo ferir a individualidade de ninguรฉm ou a sua condiรงรฃo naquele momento. Isso nรฃo รฉ nenhuma novidade, como tambรฉm nรฃo รฉ novidade que a norma padrรฃo nem sempre dรก conta desse cuidado e que, por isso, vamos fazendo uns puxadinhos com a lรญngua para poder agradar e nรฃo ofender quem nรฃo queremos ofender. Trata-se basicamente de se preocupar com o bem-estar do outro.
Penso que se eu tivesse que escolher entre o cuidado com alguรฉm que estรก ร minha frente e o cuidado com o uso correto da norma padrรฃo da Lรญngua Portuguesa, eu nรฃo hesitaria. Lembro-me aqui da histรณria da mulher judia pobre que levou uma galinha para o rabino dizer se era apropriada ou nรฃo para o consumo. A mulher do rabino a atendeu e levou a galinha para o rabino analisar. Ele olhou a galinha e olhou para a Torรก, olhou para a Torรก e olhou para a galinha e, depois de algum tempo, disse: “Essa galinha nรฃo รฉ kosher.”
A mulher do rabino voltou para a sala para dar a notรญcia para a pobre mulher, que torcia as mรฃos nervosamente. Ela olhou para a mulher e olhou para a galinha; olhou para a galinha e olhou para a mulher atรฉ que lhe disse: pode levar e servir sua famรญlia. O rabino disse que ela รฉ boa para o consumo.
Pois รฉ. Creio que se o mundo fosse menos Descartes e mais Levinas, questรตes como essa seriam facilmente resolvidas.
*Daniel Medeiros รฉ doutor em Educaรงรฃo Histรณrica e professor no Curso Positivo. @profdanielmedeiros