Daniel Medeiros*
No Dia dos Mortos, recordamos os nossos entes queridos que se foram. Por vezes, depositamos flores em suas lรกpides com datas jรก amarrotadas pelo tempo. Ou simplesmente comentamos ร mesa uma passagem memorรกvel, alegre ou edificante e, assim, esticamos por alguns minutos a existรชncia desse morto entre nรณs. Quando a morte รฉ recente e a ausรชncia ainda nรฃo รฉ um fato assimilado ou mesmo aceito em face de circunstรขncias que ocorreu – como um acidente ou um mal sรบbito ou, pior, uma violรชncia – o dia se torna um receptรกculo de lamentos e acusaรงรตes ao mundo e ao alรฉm-mundo, tendo o suposto Protetor como alvo predileto; a incompreensรฃo pela perda sendo transferida para quem deveria evitรก-la ou pelo menos justificรก-la.ย
No entanto, quando saรญmos de nossa bolha e olhamos sob a perspectiva da Histรณria, hรก muito mais mortes que comemoramos do que lamentamos. A morte รฉ uma “soluรงรฃo” para os inimigos, para as ameaรงas, para os que sรฃo diferentes de nรณs, daqueles que, real ou imaginariamente, pรตem em risco nossa existรชncia e nosso modo de vida. Como ensina Freud, em um texto escrito durante a primeira grande guerra, โo que nรฃo รฉ cobiรงado por nenhuma alma humana nรฃo precisa ser proibido (โฆ) ร justamente a รชnfase da proibiรงรฃo: nรฃo matarรกs que nos dรก a certeza de que descendemos de uma sรฉrie infinitamente longa de geraรงรตes de assassinos, para os quais o prazer de matar, tal como talvez para nรณs mesmos ainda, estava no sangueโ.ย
No nosso cotidiano, assumimos esse paradoxo, muitas vezes, ao mesmo tempo: enquanto um pensamento entristece com a lembranรงa do ente querido que se foi, outro vibra com a notรญcia de que a polรญcia exterminou mais uma โgangue de bandidosโ, ou de que o paรญs iniciou a contraofensiva contra os terroristas responsรกveis por um massacre inacreditรกvel. Nosso olhar embaรงa e se ilumina em torno do mesmo assunto. Tudo depende de qual morte estamos falando.ย
Quais mortos merecem nosso pranto? Hรก sempre uma explicaรงรฃo plausรญvel para que a morte seja fonte de dor ou de jรบbilo. A conclusรฃo รฉ um tanto embaraรงosa: nรฃo รฉ a morte em si que รฉ chorada ou comemorada, mas a forma como essa morte afeta o nosso espรญrito narcรญsico que, como mais uma vez lembra o Doutor Freud, acha que nรฃo vai morrer nunca e detesta quando o desautorizam com seus desaparecimentos inesperados.ย
Nosso tempo de informaรงรฃo contรญnua e sem descanso, lembra-nos de todos os mortos a todo instante. Durante a pandemia, os nรบmeros nos eram apresentados diariamente, em um placar seguido de quadros explicativos do aumento ou diminuiรงรฃo das incidรชncias da รบltima semana. Ficรกvamos informados sobre as mortes dos outros e esse espectro nos acompanhava em todos os lugares, lembrando-nos de que poderรญamos ser os prรณximos da lista. Muitos espรญritos mais fracos, inclusive, caรญram em uma negaรงรฃo explรญcita e desafiaram as mais sensatas medidas de seguranรงa, de distanciamento e de vacinaรงรฃo. Muitos morreram porque recusaram a ideia de que poderiam morrer, jรก que, afinal, a morte รฉ um assunto dos outros.
Agora, vivemos o desfile diรกrio das mortes pela aรงรฃo terrorista na Palestina e pela contra ofensiva insana que tornou toda uma populaรงรฃo refรฉm de um desejo de ira e vinganรงa muito mais do que de Justiรงa. E, mais uma vez, temos a oportunidade de escolher quais mortes vamos lamentar e pelas quais vamos torcer, como em uma disputa de pรชnaltis no fim de um campeonato. Curioso รฉ que, nessas disputas, os dois lados invocam o Protetor, como se Ele tambรฉm tivesse um lado e como se Ele tambรฉm lamuriasse ou regozijasse pelos mortos โcertos” ou โerradosโ.
Quais mortos merecem nosso pranto? Eu fico com a resposta de Hemingway. Nesses tempos de realidades tรฃo indecorosas, a ficรงรฃo รฉ, de longe, o lugar onde podemos encontrar o que resta da nossa humanidade combalida. E plantรก-la novamente, para alรฉm do vale das sombras.
*Daniel Medeiros รฉ doutor em Educaรงรฃo Histรณrica e professor no Curso Positivo.
@profdanielmedeiros