A corda arrebenta para todos

Maurรญcio Dziedzic*

Ao pensar na รfrica, geralmente formamos imagens com exuberรขncia de recursos naturais. Falta de รกgua nos remeteria aos desertos daquele continente, especialmente o Saara, no Norte. No Sul, ficam os desertos do Kalahari e da Namรญbia. De resto, nรฃo se imaginaria escassez hรญdrica. Todavia, no extremo sul, a Cidade do Cabo, capital legislativa da รfrica do Sul, estรก vivendo uma das piores crises hรญdricas urbanas que se tem notรญcia nos tempos modernos. A cidade de cerca de meio milhรฃo de habitantes foi apontada peloย New York Timesย em 2014 o melhor lugar do mundo para visitar. Hoje, sua populaรงรฃo vive em contagem regressiva para o โ€œDia Zeroโ€: o dia em que a รกgua da cidade vai acabar. Esta data jรก foi estimada em abril, passou para maio, e atualmente รฉ 04 de junho de 2018! Em Curitiba, se parasse de chover, considerando cheios os quatro principais reservatรณrios de abastecimento, terรญamos รกgua suficiente para abastecer a populaรงรฃo por cerca de dois anos. Isso sem considerar outros usos da รกgua.

Na regiรฃo da Cidade do Cabo, choveu muito pouco nos รบltimos trรชs anos e seus habitantes vivem a realidade do racionamento: 50 litros por dia por pessoa, desde o inรญcio de fevereiro, e volumes pouco maiores hรก alguns meses. Esse valor รฉ muito prรณximo ao considerado mรญnimo necessรกrio para nรฃo aumentar riscos de doenรงas de veiculaรงรฃo hรญdrica. Inclui 3 litros para beber, 20 litros para descarga sanitรกria, 15 litros para banho e 10 litros para cozinhar. Seria possรญvel diminuir esse volume implementando, por exemplo, tecnologias que economizam รกgua na descarga. Entretanto, nรฃo estรฃo instaladas na cidade toda, nรฃo sendo alternativa viรกvel no presente.

Alรฉm das alteraรงรตes climรกticas, responsรกveis pela falta de chuva, outros fatores contribuรญram para a crise atual. Os tรฉcnicos responsรกveis pelo planejamento da cidade vรชm advertindo os governantes hรก quase trรชs dรฉcadas que a infraestrutura existente nรฃo seria suficiente para manter o abastecimento de รกgua da Cidade do Cabo em caso de secas prolongadas. O principal reservatรณrio de abastecimento da cidade fica em uma รกrea em processo crescente de desertificaรงรฃo, claro indicador de mudanรงas no clima da regiรฃo. Os governantes optaram por ignorar o aviso, nรฃo promover melhorias na infraestrutura, e continuar fomentando o desenvolvimento econรดmico nรฃo sustentรกvel. Em meados de 2017, a crise teve que ser admitida, e em janeiro de 2018 foi determinado que residรชncias que utilizassem mais que 350 litros de รกgua por dia seriam multadas. Alรฉm disso, a รกgua para abastecimento da cidade nรฃo serรก compartilhada com os agricultores da regiรฃo, o que provavelmente vai causar um grande aumento nos preรงos de alimentos nos prรณximos meses. Ou seja, a crise hรญdrica vai desencadear outras crises, como a de abastecimento, a econรดmica e a sanitรกria.

Ironicamente, a Cidade do Cabo vai sediar, em maio prรณximo, a Conferรชncia Internacional sobre Perdas de รgua. Essas perdas, principalmente devido a vazamentos nas tubulaรงรตes de redes de abastecimento, se constituem em um grande vilรฃo hรญdrico. O percentual de perdas varia bastante entre as cidades e paรญses. Na รfrica do Sul, sรฃo da ordem de 30%. Em Curitiba, da ordem de 40%. A crise hรญdrica de Sรฃo Paulo, por exemplo, seria resolvida, ou bastante aliviada, com a diminuiรงรฃo das perdas de mais de 30%. No Brasil, a variaรงรฃo รฉ grande, chegando a cerca de 70% em algumas cidades, e com uma mรฉdia de cerca de 37%. ร‰ muito desperdรญcio que, se evitado, pode descartar a necessidade de exploraรงรฃo de outros mananciais.

Tanto aqui, quanto na รfrica do Sul, uma gestรฃo pรบblica sรฉria e preocupada com o bem-estar da populaรงรฃo, o que inclui a sustentabilidade, รฉ fundamental para evitar vรกrios tipos de crise. Infelizmente, o que se vรช รฉ pouca ou nenhuma preocupaรงรฃo com a questรฃo pรบblica. Os governantes e seus burocratas associados se colocam em luta constante pelo poder e vantagens pessoais – e desdรฉm pela situaรงรฃo alheia. Esquecem que estรฃo forรงosamente inseridos na realidade coletiva, e que um dia a corda arrebenta para todos. Aqui, ainda hรก tempo para agir. Na Cidade do Cabo, vรฃo ter que colar os cacos.

E por onde comeรงar? Pela educaรงรฃo de qualidade e acessรญvel a todos. Alรฉm disso, รฉ fundamental mudar o paradigma educacional do Brasil. Precisamos educar visando ao desenvolvimento de capacidade de anรกlise crรญtica, ao contrรกrio do que se pratica hoje, que รฉ a cultura da memorizaรงรฃo e da resposta a perguntas prontas. Os egressos de nossas escolas precisam ser capazes de questionar a pergunta, de investigar os motivos para que ela seja feita. Dessa forma, teremos cidadรฃos mais conscientes e menos fรกceis de manipular. Ao mesmo tempo, รฉ essencial desenvolver no aluno/cidadรฃo os princรญpios รฉticos, principalmente pelo exemplo, na escola, em casa e na sociedade.

 

*Maurรญcio Dziedzic, coordenador do Programa de Pรณs-Graduaรงรฃo em Gestรฃo Ambiental (Mestrado e Doutorado) da Universidade Positivo (UP). ร‰ Engenheiro Civil, Mestre em Recursos Hรญdricos e Doutor em Engenharia Hidrรกulica.

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