Parece final de campeonato. Imprensa noticia intensamente a data e hora do embate, analisa o perfil de cada jogador. Comentaristas projetam a disputa e o resultado. A cada decisรฃo do Supremo Tribunal Federal (STF) com potencial de interferir nos trabalhos da forรงa-tarefa da Lava Jato, em Curitiba, os holofotes brilham com mรกxima intensidade sobre a corte. O problema รฉ que o excesso de luz, nรฃo raro, acaba ofuscando a visรฃo de todos. A recente decisรฃo acerca da competรชncia da Justiรงa Eleitoral para julgar crimes eleitorais e crimes a eles conexos รฉ exemplo desse fenรดmeno.
O envolvimento da mรญdia e do grande pรบblico em decisรตes judiciais nรฃo รฉ em si nociva. A questรฃo fundamental, contudo, parece residir no deslocamento para o STF da arena prรณpria para a disputa. Isso porque o canal do debate jurรญdico รฉ delimitado por regras e princรญpios postos no texto constitucional. Nรฃo por outro motivo, deve haver uma calibragem nas expectativas geradas por decisรตes judiciais.
Ainda que nรฃo se trate da aplicaรงรฃo cega da lei ao caso concreto, nรฃo รฉ possรญvel que o julgador escolha a soluรงรฃo preferida para depois encontrar fundamentos que a justifiquem. Pior ainda, nรฃo se pode decidir com base em argumentos desconectados da ordem jurรญdica vigente. Democracia exige respeito ร s regras do jogo, as quais se encontram plasmadas no texto constitucional. Goste-se ou nรฃo delas, seu respeito รฉ pressuposto para a manutenรงรฃo da civilizaรงรฃo construรญda no Brasil ao longo dos sรฉculos.
Isso nรฃo significa dizer que jรก atingimos o suprassumo da virtude, com um ordenamento jurรญdico-constitucional capaz de atender e solucionar de forma perfeita todos os conflitos e mazelas sociais do paรญs. Pelo contrรกrio. Mas o caminho para tanto รฉ o debate polรญtico realizado por polรญticos com argumentos polรญticos na arena polรญtica.
Acontece que รฉ justamente a fundada descrenรงa no mundo polรญtico que transferiu paixรตes e esperanรงas ao Supremo Tribunal Federal. Afinal, polรญticos corruptos jamais travarรฃo debates cujo resultado possa diminuir seus benefรญcios, limitar suas garantias ou ampliar o combate a seus desvios.
O ceticismo nos polรญticos e no direito por eles criado ao longo de nossa histรณria nรฃo pode, contudo, gerar seu abandono. Precisamos de polรญticos e precisamos do direito. Apenas por meio deles รฉ que as mudanรงas podem ocorrer. A soberania popular consagrada nos textos constitucionais modernos traz os mecanismos para que isso aconteรงa. Tanto que grande parte das casas legislativas tiveram importante renovaรงรฃo, gerando expectativa de que os novos representantes promovam as mudanรงas necessรกrias.
No mais recente julgamento midiรกtico do STF, tรฃo clara quanto a falta de estrutura da Justiรงa Eleitoral para julgamento de crimes complexos รฉ a previsรฃo constitucional e legal da competรชncia da Justiรงa Eleitoral para julgamento dos crimes correlatos a delitos eleitorais.
Isso nรฃo significa que nรฃo seja legรญtima e salutar a manifestaรงรฃo de todos os envolvidos na questรฃo, em especial dos membros da forรงa-tarefa da Lava Jato. Mas, uma vez nรฃo sufragada a tese pelo รณrgรฃo mรกximo do Poder Judiciรกrio, cabe ร sociedade e ร imprensa levar o brilho dos holofotes para o Congresso Nacional. Lรก, ainda que os limites da Constituiรงรฃo tambรฉm prevaleรงam, a amplitude da argumentaรงรฃo รฉ maior e o resultado tende a agradar mais cidadรฃos.
Que a populaรงรฃo passe a conhecer os partidos, seus lรญderes, suas ideias e suas bandeiras como hoje conhecem cada um dos ministros do STF. Que as discussรตes no legislativo sejam transparentes e transmitidas ao vivo, que os legisladores sejam criticados e percam votos por suas opiniรตes. Que o Poder Legislativo recupere seu papel de representaรงรฃo e criaรงรฃo do direito, conforme previsto pela Constituiรงรฃo. ย
E que o STF exerรงa sua funรงรฃo iluminista nesse processo. Nรฃo para arvorar-se em criador de uma nova ordem jurรญdica demandada pela maioria da sociedade, mas para manter fidelidade ao texto constitucional, fazendo com que os holofotes sejam direcionados a quem de direito.
*Fernando Mรขnica รฉ doutor em Direito do Estado pela USP e professor do Mestrado em Direito da Universidade Positivo.