O problema estrutural por trás do leilão da Norte-Sul

Em maio do ano passado, durante a greve dos caminhoneiros, a dependência da cadeia produtiva nacional em relação ao transporte rodoviário ficou evidente. Essa grande concentração no movimento de cargas em caminhões mostrou a necessidade urgente de buscar a diversificação dos modais de transporte – e as ferrovias se fazem essenciais neste processo. Devido à atual crise fiscal enfrentada, os recursos governamentais direcionados aos investimentos em infraestrutura minguaram e, portanto, escancararam a necessidade da injeção de capital da iniciativa privada.

O leilão realizado em 28 de março deste ano foi um sucesso em termos financeiros. A Rumo venceu o certame referente a um trecho de 1.537 quilômetros da ferrovia Norte-Sul, pagando um ágio de 100,92%. Ademais, durante os 30 anos da concessão, a empresa deverá investir R$ 2,72 bilhões em melhorias. Mas o resultado positivo do leilão não pode esconder um problema crônico no Brasil: a falta de planejamento e gestão de projetos consistentes para investimento de longo prazo. A oferta da Ferrovia Norte-Sul, espinha dorsal do sistema ferroviário nacional, esconde um problema estrutural que limita o aumento da concorrência no processo licitatório. Justifico: como o trecho não tem acesso direto ao mar, a concessionária terá que utilizar duas outras linhas, operadas pela VLI e Rumo.

No projeto licitatório, o governo garante por cinco anos a passagem e, depois desse período, o novo operador privado deverá solicitar e negociar o “direito de passagem”. As tarifas relacionadas ao direito de passagem das concessões adjacentes podem tornar o investimento menos rentável e prejudicar a operação, pois grande parte da produção transportada pelo eixo Norte-Sul envolve regiões exportadoras de grãos e fardos de celulose – e necessitam de um desembarque final em algum porto.

Que investidor, seja estrangeiro ou não, estaria interessado em fazer esse formato de negócio com o governo brasileiro nessas condições? Não fica difícil concluir que seria uma disputa bilateral entre as duas operadoras que já atuam nas ferrovias brasileiras e que são detentoras das estradas de ferro que dão acesso ao porto. Não vamos entrar no mérito das empresas – elas estão em seus direitos e aproveitando de suas vantagens, como é justo e próprio da iniciativa privada. O problema não está na empresa e sim no modelo, mas a discussão aqui é puramente econômica e sobre as necessidades brasileiras.

Este é o primeiro leilão de ferrovia em mais de dez anos. Em um país agrícola, esse dado é desolador. É muito caro transportar commodity por rodovias – o lugar dos grãos é no vagão. Mas estamos demorando muito para entender isso. E quando se faz algo, como é o caso da concessão da Norte-Sul, se faz mal feito. E aí chegamos no centro da discussão: a falta de concorrência nos trilhos. Uma única empresa, no caso a vencedora, poderá colocar seus vagões para rodar – o que torna o transporte ferroviário, em muitos casos, mais caro que o rodoviário. É inconcebível.

Enquanto o mundo caminha para o compartilhamento, o Brasil concede mais de 1.500 quilômetros de malha ferroviária sem direito de passagem por 30 anos. Isso reforça as ilhas de trilhos que temos pelo país. Sem direito de passagem, umas pelas outras, as operadoras não conseguem completar o ciclo logístico por trilhos – e aí tudo acaba caindo nas rodovias novamente.

Segundo um estudo da Confederação Nacional da Indústria, 30% da malha ferroviária está inutilizada e não tem condição de entrar em operação sem investimento em manutenção. São 28,2 mil quilômetros de trilhos, sendo que 8,6 mil estão enferrujando, à espera dos trens. Em grande parte pelo impedimento de passagem e pela impossibilidade de interconexão das malhas. Assim, o que deveria significar um grande avanço logístico, infelizmente não terá grande impacto na infraestrutura do país.

*Lucas Lautert Dezordi, doutor em Economia e sócio da Valuup Consultoria, é professor da Universidade Positivo.  

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