Raiva ruim

Sinto raiva. Meu corpo, ร s vezes, chega a tremer com o percurso transido da raiva e espremo meus dedos nas palmas das mรฃos a ponto de doer, deixar marcas. Entรฃo vou pra varanda, fico em silรชncio, distante, olhando para um horizonte qualquer, ruminando imagens de atitudes que sei que nunca realizarei, mas que servem para aliviar meu espรญrito.

Tenho raiva das pessoas frias, das pessoas brutas, das que ignoram o pudor e a decรชncia, das que sรฃo violentas, das que gritam pedindo por violรชncia, das que ignoram o horror de tudo isso e, principalmente, das que riem de todos que, como eu, sentem raiva.

Minha raiva, sei disso, tem nome: chama-se impotรชncia de compreensรฃo. Por nรฃo conseguir tirar aquele sorriso vil do rosto de quem quer destruir coisas que me sรฃo caras e de quem quebra placas e arranca faixas com as mensagens mais sinceras de consertar o mundo para todo mundo, para melhorar as coisas para alรฉm de mim e, justamente por isso, sรฃo as atitudes que mais despertam o riso frouxo e cรญnico e, diante disso, eu me refugio na raiva.

Acompanho as redes sociais e leio sobre as raivas dos outros, muitas tรฃo parecidas e algumas ainda mais sofridas que a minha. Vou apertando os botรตes que expressam apoio e solidariedade, vou compartilhando os textos inflamados dos atingidos como eu, vou escrevendo e editando imagens que se multiplicam dentro da noite veloz. Na manhรฃ, jรก cedinho, volto para as redes e leio os comentรกrios dos que riem. E estremeรงo novamente.

Os dias passam. Os meses se arrastam e, toda a vez que me deparo com essas pessoas, minha tรชnue esperanรงa no mundo esmorece. Por que hรก tanta gente cuja energia de viver consiste em negar aos outros o direito ร  uma felicidade que nรฃo fere, nรฃo humilha e nรฃo mata?

Hรก mais de dois mil anos, Aristรณteles jรก dizia que a busca da felicidade รฉ movida por um sentimento de falta e que esse sentimento varia de pessoa para pessoa, mas que todos entendem que buscar um fim, preencher uma lacuna (saรบde, riqueza, amor) รฉ o caminho para se sentir feliz. Logo, a felicidade รฉ uma busca afirmativa, um preenchimento, uma realizaรงรฃo. Mas nรฃo para essas pessoas de quem sinto raiva. Para elas, o sucesso รฉ ver os outros perderem algo, serem privados de algo, ameaรงados por algo, destituรญdos de algo: a escola, o emprego, a aposentadoria, a escolha, o espรญrito crรญtico.

Temo que ultimamente essas pessoas zombeteiras tenham tomado a dianteira sobre mim. Temo que elas tenham me contaminado com sua estratรฉgia de aniquilaรงรฃo. E a prova disso รฉ exatamente essa raiva que sinto. Esses pensamentos que tenho sobre elas. Essa vontade que me imobiliza, esse tremor que me acende os nervos e enevoa a vista. Eles sรฃo os senhores da raiva que sinto.

E busco reagir com a ajuda da minha amiga Filosofia. E encontro o que diz sabiamente a filรณsofa Chantal Mouffe: o desafio que se coloca ร  polรญtica democrรกtica รฉ tentar manter sob controle o surgimento do antagonismo por meio da introduรงรฃo de uma forma diferente de nรณs/eles. Uma forma que nรฃo seja de amigo e inimigo. Uma forma que nรฃo tenha a raiva como fio condutor. E para isso acontecer, minha raiva tem de se tornar outro sentimento, um sentimento que gere resultados prรกticos na defesa dos espaรงos institucionais nos quais aconteรงa a relaรงรฃo polรญtica e nรฃo a relaรงรฃo de guerra. ร‰ preciso olhar essas pessoas como adversรกrios a serem derrotados e nรฃo como inimigos a serem eliminados. Por isso, oย  desastre รฉ negar as instituiรงรตes nas quais essas pessoas possam ser vencidas pela inteligรชncia e pela palavra. O desastre รฉ desistir de construir espaรงos de representaรงรฃo e de regras de atuaรงรฃo, para obrigar essas pessoas a sustentar suas posiรงรตes sem poderem arrancar faixas e quebrar placas, mas com explicaรงรตes e argumentos.

Valho-me mais uma vez de Chantal Mouffe: para funcionar, a democracia exige que haja um choque entre posiรงรตes polรญticas democrรกticas legรญtimas. Sem essa vรกlvula de escape, o risco รฉ de que o confronto democrรกtico seja substituรญdo pelo confronto entre valores morais nรฃo negociรกveis.

ร‰ isso que eles querem. Jogar-nos na arena dos combates sem regras onde apenas o รณdio cego e a vontade de destruiรงรฃo impera. Nesse jogo seremos inapelavelmente destruรญdos. Porque sabemos que nossa raiva รฉ ruim, nossa raiva nos contamina e nos adoece. Eles vencerรฃo se cedermos. Eles vencerรฃo se deixarmos a raiva ruim nos dominar, se entrarmos na competiรงรฃo de quem xinga mais e grita mais alto. Eles vencerรฃo no momento que tambรฉm quebrarmos placas e arrancarmos faixas.

O sorriso deles รฉ um sinal, รฉ um aviso: com a nossa aquiescรชncia, eles jรก estรฃo quase chegando lรก.

*Daniel Medeiros รฉ doutor em Educaรงรฃo Histรณrica pela UFPR, consultor, palestrante e professor de Histรณria e Filosofia no Curso Positivo.

 

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