*José Pio Martins
O isolamento social para combater a pandemia do coronavírus está servindo de palco para debates confusos e construções lógicas erradas. Ora os debates são feitos com premissas corretas, ora com premissas falsas. A essência da questão reside no dilema “ou parar, ou trabalhar”. De saída, uma premissa falsa é colocada com indagações do tipo: “vamos priorizar a vida ou a economia?”; “vamos defender as pessoas ou os empresários?”.
A primeira premissa falsa nessas perguntas está no fato de que as duas coisas não se excluem. Se todos, rigorosamente todos os habitantes de um país parassem, rapidamente não haveria fornecimento de energia, água, gás, medicamentos e comida, pois não haveria ninguém para ligar nem sequer uma chave da usina hidrelétrica. Ou seja, não existe a opção de “todos” pararem e, mesmo assim, os bens e serviços mínimos à vida continuarem chegando à mesa por uma mágica extraterrestre.
Claro que o isolamento social é a principal arma de combate a essa pandemia triste. Mas é óbvio que a humanidade tem que arrumar meios para que uma parte da população siga trabalhando, com todos os cuidados possíveis, a fim de garantir a sobrevivência de todos. A economia só existe porque há seres humanos com necessidades vitais (das quais a vida depende), a começar pelas mais óbvias: alimento, abrigo e repouso. E quem produz os produtos para satisfazer essas necessidades são as mesmas pessoas que vão consumi-los.
Quando um animal nasce na natureza, a mãe, o pai ou o próprio filhote têm que sair em busca de alimentos; se ninguém fizer isso, todos morrem. Como o instinto da sobrevivência é um traço dos animais, racionais ou não, eles saem à busca dos meios para sua sobrevivência mesmo sob condição de risco. A economia nada mais é do que um sistema para prover os bens e serviços capazes de atender às necessidades múltiplas dos seres humanos, pela transformação dos recursos da natureza (que são escassos).
A economia faz sentido quando uma criança de 13 anos consegue entender o significado dos fatos reais por trás das teorias. Se você quer ensinar economia a uma criança, quando ela sentar-se à mesa para ter seu café da manhã, antes de começar a comer, pergunte-lhe: “você sabe de onde vêm essas coisas? o leite, o pão, o queijo, a manteiga, o garfo, a faca, a xícara, a toalha, o fogão, a mesa etc?”.
Mostre à criança o leite e a caixa que o embala e pergunte se ela sabe de onde veio tudo isso e quantas operações o mundo teve que executar para que os produtos estivessem sobre a mesa de sua refeição matutina. Uma boa técnica é começar a imaginar o percurso inverso de cada produto. O leite volta para a geladeira (ah! explique qual o processo de fabricação de uma geladeira), dali volta ao supermercado (como surgiu o supermercado?), depois ao caminhão que transportou leite desde a indústria etc. Peça para a criança imaginar as milhares de operações que entram na fabricação de um caminhão, fale como foi feita a rodovia, chegue até fábrica de laticínios e explique a complexidade para processar o leite in natura e prossiga até retornar à vaca em algum estábulo de uma fazenda distante de sua mesa de café da manhã.
A cadeia produtiva mostra toda sua complexidade se repetirmos esse exercício mental para o café, o açúcar, a xícara, a manteiga, a toalha, a mesa, a faca, o garfo… ou seja, não é preciso muito para entender o tamanho da encrenca que o mundo tem que resolver para dar a você um simples café da manhã. Os radicais de esquerda gostam de xingar o mercado e os empresários. Marx dizia que o empresário é o sicofanta do capital (patife, velhaco). Isso é uma bobagem. O mercado fez mais pela redução da pobreza que todos seus desafetos somados. Quanto ao empresário, como dizia Roberto Campos, o respeito pelo produtor de riqueza é o começo da solução da pobreza.
Se você compulsar as notícias e os debates em jornais, rádios e redes sociais, encontrará pessoas ditas cultas dizendo que ir ao trabalho e seguir produzindo é privilegiar o dinheiro em vez da vida, é correr o risco de morrer para dar lucro aos empresários. O isolamento social é eficaz para conter o contágio. Evitar aglomerações é necessário. Mas, é claro também, que a economia não pode parar totalmente, pois, como já dito, a vida depende dos bens e serviços mínimos para a sobrevivência. Dos 211,3 milhões habitantes do Brasil, dos quais 87,5% vivem nas cidades, e precisam ser abastecidas.
Enfim, a economia é uma ciência da vida, não é uma coisa demoníaca do dinheiro e do lucro e, quando colocada dessa forma, parece que o debate é entre o bem e o mal, com o bem de um lado (a saúde pública) e o mal (a economia) de outro. Essa oposição não existe e acreditar nela é não ter noção mínima do que seja um sistema econômico.
*José Pio Martins, economista, é reitor da Universidade Positivo.