Separados fisicamente uns dos outros, em necessário porém nada fácil confinamento, é tempo de refletir sobre nosso longo processo civilizacional, pois ainda não atingimos um ponto em que episódios de exclusões, racismo, injustiças, violências de toda ordem estejam extintos.
Ao longo da história registramos os mais repugnantes episódios de intolerância, desde os casos isolados aos públicos de grande repercussão, como as guerras em nome da religião, a morte de milhares de “infiéis” nas cruzadas iniciadas no século XI, a de ocidentais nas jihads do Estado Islâmico, os trucidamentos motivados pela pretensa supremacia e pureza da raça ariana, com oito milhões de pessoas – judeus, homossexuais, ciganos, deficientes – assassinados pelo nacional-socialismo alemão.
Outra barbaridade, além do quase extermínio de índios e escravidão de negros no Brasil, é que até quase vinte anos atrás, pacientes que sofriam de algum sofrimento mental eram submetidos a choques elétricos e tratamentos profundamente desumanos; a extinção premeditada e a ofensa à integridade física dos grupos minoritários, a segregação imposta a povos imigrantes, a judeus, o apartheid na África do Sul ou aos pobres nas periferias das grandes cidades constituem violências, assim como a mais difusa e menos visível privação de direitos.
Agora, ao lado daqueles que aplaudem, algumas pessoas desenvolvem preconceito contra trabalhadores da saúde, muitas vezes chegando até às agressões verbais diretas, como se estes fossem os transmissores de vírus e doenças, e não pessoas na linha de frente desgastando-se para cuidar daqueles que mais necessitam e que sofrem afastados de suas famílias. Não obstante a Constituição assegurar que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, a discriminação ainda prevalece, o pavor de contaminar-se sendo dirigido aos que trabalham para minorar o sofrimento alheio, e não aos que negam a pandemia e passeiam livres pelas ruas e em manifestações suicidas para defender o indefensável.
E um dos piores aspectos de nossa incapacidade de olhar os demais é o crescente partidarismo de nossas relações, de exclusão daqueles que não pensam exatamente como nós, com uma ideologia que oculta o modo como as relações sociais são produzidas e tenta dar um aspecto racional às formas de dominação, apresentando como naturais e eternas, universalmente válidas, ideias que apenas naturalizam as divisões sociais, classificando os diferentes de nós como bandidos, loucos, contagiosos, como se estas fossem ordenações naturais e eternas.
Introjetamos desde muito cedo um certo pensamento classificatório, embora existam várias ordens possíveis na dimensão do que nos é estranho, pois leis e geometrias agrupam pessoas, animais, e também as coisas, sem que cheguemos a questionar os critérios mediante os quais isso foi definido, e, principalmente, a quem interessa tal compartimentação, pois nem sempre encontramos elaborações teóricas objetivas e neutras, e muitas vezes as condições sociais e históricas determinam condições irreais; ou seja, os critérios são produtos de simples ideologias.
Ideologia costuma ser definida como “um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (ideias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer”, e é importante termos em mente que esta muda com os povos, com suas vitórias ou derrotas, com dirigentes que mudam nem sempre para melhor, e assim por diante.
No entanto, é interessante estar consciente que poderiam ser diferentes, como o fez um dos grandes escritores, Jorge Luís Borges, que num ensaio cita uma antiga “enciclopédia chinesa” na qual “os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pelo de camelo, l) etc…, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas”. O tom é de brincadeira, mas o assunto é sério: quem (ou o quê) nos autoriza a classificar e acreditar que esta catalogação é a única possível e correta?
Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil. wcmc@mps.com.br