Por Daniel Medeiros*
Agostinho dizia que o mal nรฃo รฉ um ente em si, porque nรฃo รฉ possรญvel que um Dโus bom tenha criado o mal. Logo, o mal รฉ uma possibilidade exclusiva dos homens e Dโus nรฃo tem nada a ver com isso. Pelo contrรกrio, Ele estรก sempre disposto a acolher e perdoar aos que se dispรตem a recebรช-Lo em seus coraรงรตes. Cabe a cada um de nรณs a escolha, porque somos livres. E se escolhemos nos afastar, muito que bem, fazer o quรช? Quanto mais longe da luz de Dโus, mais vamos nos afundando nas sombras que indissociam todas as atitudes atรฉ que nรฃo sabemos mais discernir nada. E essa incapacidade de saber o que fazemos, a intensidade do que fazemos, os destinatรกrios de nossas aรงรตes, tudo isso รฉ o mal.
Hannah Arendt, cuja tese de doutoramento foi sobre o conceito de amor em Santo Agostinho, formulou um conceito de mal que se traduz pela irreflexรฃo, pela ausรชncia de pensamento. No lugar de Dโus, um Espรญrito que รฉ a minha capacidade de pensar, querer e julgar. Nรฃo um Espรญrito transcendente, mas Eu prรณprio, um Eu alargado, pois inclui o Eu que age no dia a dia e o Eu que pensa e que avalia os prรณprios atos. Quando pensamos โ e avaliamos nossas aรงรตes โ, nossos desejos, nossas prรกticas, suas motivaรงรตes e, principalmente, as possibilidades de suas consequรชncias , que nunca sabemos exatamente quais serรฃo, somos capazes de evitar o mal โ o mal que estรก ao alcance de qualquer um de nรณs, o mal banal como musgo que cresce em qualquer superfรญcie, sem garantias e sem exceรงรตes. Basta nรฃo pensar.
Fico matutando essas coisas, sem nenhum rigor, sem nenhum propรณsito acadรชmico, em um domingo de Dia das Mรฃes, que รฉ uma data que remete tanto ร ideia de natalidade, de coisa nova, de oportunidade, e lembra ainda a ideia de cuidado, de zelo, de proteรงรฃo. Um domingo que tambรฉm amanheceu aziago com a notรญcia que rompemos a casa dos dez mil mortos e com a tristeza que a notรญcia acompanha, e a dรบvida que nรฃo se esvanece: quantos poderiam ser poupados?
Outra implicaรงรฃo curiosa nesse mover sem rumo do pensamento: o sopro foi, na linguagem mรกgica do mito, o melhor significado da vida, da criaรงรฃo: “e Dโus soprou o boneco de barro e fez-se homem”. O sopro รฉ, agora, o que mortifica. Nรฃo sรณ o medo da doenรงa que vem pelo sopro, mas das coisas que sรฃo ditas, mal ditas. โO mal รฉ o que sai da boca do homemโ, diz, em algum momento, as Escrituras. E o sofrimento que causam as palavras que ferem como adagas.
Ligo para minha mรฃe. Pela primeira vez na minha vida fiquei longe dela em um Dia das Mรฃes. Mandei entregar almoรงo pra que ela nรฃo precise cozinhar e possa ficar sentada no jardim da casa dela pegando o belo sol outonal, ao lado de meu pai. Ela reclama da minha ausรชncia, pede que eu ligue mais, que eu leve minha voz a ela, que jรก quase nรฃo enxerga. Engulo em seco. O mal nรฃo รฉ sรณ a ausรชncia da luz, como diria Agostinho. Ou de pensamento, como afirma Hannah Arendt. Tambรฉm รฉ a ausรชncia de cuidado, de carinho, de abraรงos e beijinhos, tantos quanto os peixinhos do mar.
* Daniel Medeiros รฉ doutor em Educaรงรฃo Histรณrica e professor no Curso Positivo.