Daniel Medeiros*
Para quem divide a casa com um parceiro ou parceira, em um primeiro momento, o confinamento pode ser visto como uma รณtima oportunidade de exercรญcio narcรญsico, aquela hora na qual se interrompe as demandas do mundo e planeja um investimento apenas em si. Daรญ vocรช dรก uma folheada nos Ensaios de Montaigne e depara-se com este texto: โDevemos nos desvencilhar de todos os vรญnculos que nos prendem aos outros; tratemos de conquistar de nรณs mesmos a forรงa de viver realmente sozinhos e de viver dessa maneira confortavelmenteโ. E entรฃo, legitimado pelo mestre, aproveitando a circunstรขncia tรฃo particular e propรญcia, vocรช vaticina: vou cuidar um pouco de mim. Outra coisa possรญvel pra fazer no confinamento รฉ dedicar-se ao seu par. Afinal, agora vocรช tem todo o tempo do mundo e nรฃo hรก mais a desculpa de que vocรช estรก estressado pelo trabalho e pelo trรขnsito e pelos compromissos sociais, ou coisa que o valha. Se estiver apaixonado, a hora รฉ essa.
Agora, um pouco de reflexรฃo โ porque, afinal de contas, hรก tempo para isso tambรฉm. A paixรฃo รฉ o exato oposto do narcisismo. Quando se estรก apaixonado, vocรช sรณ vรช a pessoa amada, sรณ quer servi-la, esquecendo de si mesmo. ร o Jack em relaรงรฃo ร Rose, do filme Titanic. Aquela tรกbua, afinal de contas, dava pros dois se acomodarem, mas, ora, assim, o amor dele nรฃo seria tรฃo pronunciado, tรฃo publicizado. Nรฃo hรก espaรงo para o eu na relaรงรฃo apaixonada. Por isso, o narcisismo funciona como um limite ร paixรฃo. Uma redescoberta do Eu, uma voz de fundo lembrando que vocรช tambรฉm existe, que tambรฉm merece ter seus desejos atendidos, considerados. Funciona como um recobrar os sentidos, um despertar desse domรญnio externo, dessa forรงa avassaladora que deixa-nos passivos e embotados.
Durante o confinamento, essas forรงas opostas podem acabar se confrontando e a mola mestra de ambas รฉ a fantasia. No narcisismo, a fantasia do โeu” apaga o perรญmetro e transforma os outros em fantasmas ameaรงadores ou inimigos a serem combatidos. Na paixรฃo, ao contrรกrio, o outro aparece como o pote no fim do arco รญris, sem mediaรงรตes. Nada pode ou deve impedir seu acesso a esse tesouro. Mas daรญ passam duas semanas, quatro semanas, e vocรช jรก nรฃo se suporta mais. Todos os seus projetos jรก foram procrastinados – atรฉ porque nem eram tรฃo urgentes assim – e seus apelos por espaรงo e por prioridade jรก afastou os outros membros da casa que agora ignoram sua presenรงa alegremente, respirando aliviados por nรฃo mais lhe dar ouvidos. E seu destempero vira desespero. Vocรช quer corrigir esse erro, desentortar a vara que vergou toda para o seu lado. Nรฃo hรก peixes no lago no qual Narciso se espelha. ร tudo estรฉril.
Tambรฉm a paixรฃo nรฃo sobrevive ร proximidade e ao cotidiano de tantas semanas iguais. Nรฃo hรก fantasia que resista ao feitiรงo do tempo, de dias e dias com a mesma rotina, as repetiรงรตes do cafรฉ, almoรงo, janta, faxina, internet, Netflix, jogo de cartas, conversas cada vez mais com conteรบdo de menos. A realidade รฉ รกspera, angulosa, esburacada. A paixรฃo se desvanece nas sestas de trรชs horas e nas insรดnias de noites inteiras. E qual a saรญda para o convรญvio no confinamento?
Ah, sem dรบvida, o Amor.
O Amor รฉ mestre na arte da contabilidade afetiva, daquelas que conseguem sempre garantir uma restituiรงรฃo, por menor que seja. Oย Amor ensina que โNรณs” nรฃo รฉ plural de โEuโ. ร outra coisa, um espaรงo construรญdo a quatro mรฃos com projeto cujo fim depende do que acontece no percurso, sem antecipaรงรตes de uma parte ou outra. O Amor รฉ um sentimento que surge com uma fatura colada nele: cobra um preรงo que รฉ sempre pago com temor e com susto, pois amar รฉ conhecer o outro do outro. Nรฃo รฉ ter afinidade, que รฉ enxergar no outro aquilo que eu gosto em mim; nรฃo รฉ ser a outra metade da sua laranja, a tampa da sua panela, como se amar tivesse a ver com completar-se, sem necessariamente completar o outro. Amar รฉ compartilhar a parte estranha do outro, aquele alguรฉm que existe alรฉm de mim ou para mim.
Por isso amar รฉ o maior desafio dos tempos de confinamento. Nรฃo รฉ entrega, nรฃo รฉ cobranรงa. ร descoberta e aprendizado. E o que essas pessoas que se amam, tรฃo diferentes, mas tรฃo prรณximas, desejam? ร a construรงรฃo da intimidade, que รฉ o espaรงo no qual nรฃo hรก um โeu fiz pra vocรช” ou um “vocรช fez pra mimโ, mas que se parece com uma praรงa de encontros fortuitos, com รกrvores centenรกrias e bancos de madeira gastos onde os dois entrelaรงam as mรฃos e ficam olhando o movimento das pessoas. Atรฉ que se levantam e um diz “jรก volto, tenho algo a fazer”; e o outro responde: “estรก bem, vou sentar na sala e ler um livro”. E um vai fazer o que tem a fazer sem que tenha de ser questionado e outro vai ler seu livro sabendo que nรฃo serรก importunado, exceto por um fato muito importante.
A intimidade รฉ o grau de liberdade na qual nรฃo รฉ preciso justificar a presenรงa do outro na sua vida, e vice versa. Na paixรฃo, vocรช quer consumir o outro. No Amor, o desejo รฉ de preservar o outro. Na paixรฃo, a fantasia รฉ o que aproxima e o que afasta um casal. No Amor, o compartilhamento da realidade irredutรญvel de cada um รฉ o desafio, o contrato assinado voluntariamente, no qual nรฃo se subtrai quem eu sou ou quem ela รฉ, mas assume a aventura de compor novas experiรชncias comuns. Como dizia o mesmo Montaigne, em outra passagem de seu primoroso livro, referindo-se ร razรฃo da amizade profunda que nutria por seu amigo Ettiene, sem a necessidade de adjetivos perfunctรณrios: “porque era ele; porque era eu”.
* Daniel Medeiros รฉ doutor em Educaรงรฃo Histรณrica e professor no Curso Positivo.