Onde perdemos o rumo?

Daniel Medeiros*

Deve ter sido lรก atrรกs, quando รฉramos acostumados com a escravidรฃo. Foram mais de trezentos anos, no campo e na cidade, em todas as regiรตes do paรญs, a presenรงa dos negros escravizados, trabalhando, produzindo, carregando, limpando, cabeรงa baixa, sem reclamar pra o dono nรฃo ser obrigado a castigar. Foi nesse tempo, aliรกs, que um conceito muito torto de โ€œbondadeโ€, โ€œgenerosidade” foi se formando. A pessoa que sofria com o sofrimento dos escravos, a pessoa que evitava castigรก-los, a pessoa que lamentava o estado de coisas enquanto a escrava tirava as xรญcaras do chรก da tarde. E entรฃo, quando os negros e negras tentavam fugir ou mesmo diante de uma malcriaรงรฃo, vinha a desilusรฃo: โ€œtanto que se fez por eles e elas, serviu de quรช? O mundo era mesmo injusto”, lamentavam as tristonhas sinhรกs.

Ou entรฃo deve ter sido quando acabou a escravidรฃo e logo, quase imediatamente, quisemos apagar esse assunto. O hino da Repรบblica, composto apenas um ano depois da Lei รurea, jรก dizia: “Nรณs nem cremos que escravos outrora/ Tenha havido em tรฃo nobre Paรญsโ€. E os novos tempos vรฃo bradar: “Esqueรงam essa histรณria, pra que ficar repisando esse assunto, jรก passou, o que serรก que querem agora, reviver essas coisas, pra gerar revanchismo, vinganรงa?”

Mas acontece que se a condiรงรฃo jurรญdica foi, de fato, eliminada, os efeitos econรดmicos e sociais permaneceram praticamente intactos. Nem รฉ preciso lembrar:ย  todos nรณs sabemos disso. Os nรบmeros estรฃo aรญ para dizer: todos os รญndices de ascensรฃo social e qualidade de vida sรฃo negativos para os negros; todos os รญndices de violรชncia, morte, pobreza, doenรงa, falta de moradia, populaรงรฃo carcerรกria sรฃo positivos para os negros. Sรณ nos anos 90, ou seja, hรก 30 anos, agiu-se institucionalmente para comeรงar a reverter esse cenรกrio, com a polรญtica de cotas. E logo a ladainha se fez ouvir:ย โ€œcomo assim, cotas? Entรฃo agora querem ser diferentes, ter vantagens?โ€ E recentemente, quando uma empresa privada criou um programa de treinamento exclusivo para negros e negras, porque descobriu que tinha mais de 50% de funcionรกrios pretos e pardos mas sรณ 16% em cargos de gerรชncia, a gritaria voltou com forรงa e ouvimos o que parecia irreal, risรญvel:ย โ€œracismoโ€, disseram os crรญticos do programa.

Deve ter sido entรฃo quando colocamos nossos filhos na escola e nรฃo havia nenhum professor negro; deve ter sido entรฃo quando entramos no restaurante chique para comemorar o aniversรกrio de casamento e nรฃo havia nenhum negro no salรฃo; deve ter sido entรฃo quando fomos a vida inteira em mรฉdicos particulares e nenhum deles era negro. Deve ter sido quando nunca reparamos nisso.

Em algum momento perdemos o rumo. Em 1823, Josรฉ Bonifรกcio, o patriarca da Independรชncia, jรก dizia:ย โ€œA sociedade civil tem por base primeiro a justicฬงa e, por fim principal, a felicidade dos homens; mas que justicฬงa tem um homem para roubar a liberdade de outro homem, e o que eฬ pior, dos filhos deste homem, e dos filhos destes filhos?โ€ย Jรก estava lรก, no inรญcio do paรญs independente, a liberdade e a igualdade como fundamentos da felicidade dos brasileiros. Faltava apenas combinar com os fazendeiros, com os traficantes e com os comerciantes. E os โ€œdireitos” deles, como ficaria? Josรฉ Bonifรกcio nรฃo pensou nos seus โ€œcompanheirosโ€? Afinal, sem escravos, como tocar os negรณcios? E quando, nos anos 30, comeรงam os negros a pegar em armas, na Bahia, no Parรก, no Maranhรฃo, o Estado nรฃo demora e vai fixando suas diretrizes e seu perfil mais acabado: que a Naรงรฃo seja lembrada apenas nos hinos e nas comemoraรงรตes. Os privilรฉgios deveriam ser sinรดnimos de direitos. E os negros e pobres, ao tentar romper a bruta cerca que os separava de uma vida digna, eram os fora-da-lei. Que fossem obrigados a respeitรก-la. E de lรก pra cรก, com paciรชncia, resiliรชncia e muita submissรฃo, alguns desses negros e pobres foram cooptados aos nรญveis intermediรกrios e atรฉ mesmo um ou outro ganhou passe de entrada nos salรตes federais. Para provar que basta โ€œfazer tudo certinhoโ€.ย Nรฃo dรก รฉ pra virar uma balbรบrdia e por em risco os direitos das pessoas de bem.

Onde perdemos o rumo? Em lugar nenhum. O rumo sempre foi esse.

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