sábado, 22 fevereiro 2025
24 C
Curitiba

Onde perdemos o rumo?

Daniel Medeiros*

Deve ter sido lá atrás, quando éramos acostumados com a escravidão. Foram mais de trezentos anos, no campo e na cidade, em todas as regiões do país, a presença dos negros escravizados, trabalhando, produzindo, carregando, limpando, cabeça baixa, sem reclamar pra o dono não ser obrigado a castigar. Foi nesse tempo, aliás, que um conceito muito torto de “bondade”, “generosidade” foi se formando. A pessoa que sofria com o sofrimento dos escravos, a pessoa que evitava castigá-los, a pessoa que lamentava o estado de coisas enquanto a escrava tirava as xícaras do chá da tarde. E então, quando os negros e negras tentavam fugir ou mesmo diante de uma malcriação, vinha a desilusão: “tanto que se fez por eles e elas, serviu de quê? O mundo era mesmo injusto”, lamentavam as tristonhas sinhás.

Ou então deve ter sido quando acabou a escravidão e logo, quase imediatamente, quisemos apagar esse assunto. O hino da República, composto apenas um ano depois da Lei Áurea, já dizia: “Nós nem cremos que escravos outrora/ Tenha havido em tão nobre País”. E os novos tempos vão bradar: “Esqueçam essa história, pra que ficar repisando esse assunto, já passou, o que será que querem agora, reviver essas coisas, pra gerar revanchismo, vingança?”

Mas acontece que se a condição jurídica foi, de fato, eliminada, os efeitos econômicos e sociais permaneceram praticamente intactos. Nem é preciso lembrar:  todos nós sabemos disso. Os números estão aí para dizer: todos os índices de ascensão social e qualidade de vida são negativos para os negros; todos os índices de violência, morte, pobreza, doença, falta de moradia, população carcerária são positivos para os negros. Só nos anos 90, ou seja, há 30 anos, agiu-se institucionalmente para começar a reverter esse cenário, com a política de cotas. E logo a ladainha se fez ouvir: “como assim, cotas? Então agora querem ser diferentes, ter vantagens?” E recentemente, quando uma empresa privada criou um programa de treinamento exclusivo para negros e negras, porque descobriu que tinha mais de 50% de funcionários pretos e pardos mas só 16% em cargos de gerência, a gritaria voltou com força e ouvimos o que parecia irreal, risível: “racismo”, disseram os críticos do programa.

Deve ter sido então quando colocamos nossos filhos na escola e não havia nenhum professor negro; deve ter sido então quando entramos no restaurante chique para comemorar o aniversário de casamento e não havia nenhum negro no salão; deve ter sido então quando fomos a vida inteira em médicos particulares e nenhum deles era negro. Deve ter sido quando nunca reparamos nisso.

Em algum momento perdemos o rumo. Em 1823, José Bonifácio, o patriarca da Independência, já dizia: “A sociedade civil tem por base primeiro a justiça e, por fim principal, a felicidade dos homens; mas que justiça tem um homem para roubar a liberdade de outro homem, e o que é pior, dos filhos deste homem, e dos filhos destes filhos?” Já estava lá, no início do país independente, a liberdade e a igualdade como fundamentos da felicidade dos brasileiros. Faltava apenas combinar com os fazendeiros, com os traficantes e com os comerciantes. E os “direitos” deles, como ficaria? José Bonifácio não pensou nos seus “companheiros”? Afinal, sem escravos, como tocar os negócios? E quando, nos anos 30, começam os negros a pegar em armas, na Bahia, no Pará, no Maranhão, o Estado não demora e vai fixando suas diretrizes e seu perfil mais acabado: que a Nação seja lembrada apenas nos hinos e nas comemorações. Os privilégios deveriam ser sinônimos de direitos. E os negros e pobres, ao tentar romper a bruta cerca que os separava de uma vida digna, eram os fora-da-lei. Que fossem obrigados a respeitá-la. E de lá pra cá, com paciência, resiliência e muita submissão, alguns desses negros e pobres foram cooptados aos níveis intermediários e até mesmo um ou outro ganhou passe de entrada nos salões federais. Para provar que basta “fazer tudo certinho”. Não dá é pra virar uma balbúrdia e por em risco os direitos das pessoas de bem.

Onde perdemos o rumo? Em lugar nenhum. O rumo sempre foi esse.

Destaque da Semana

Academia do Coração do Hospital Costantini ultrapassa 350 mil atendimentos

Estima-se que os praticantes da academia caminharam juntos, nos...

Com impacto emocional, alopecia areata ganha novas opções de tratamento

Sociedade Brasileira de Dermatologia divulgou recomendações atualizadas para aprimorar...

Problemas de visão atingem 19% dos brasileiros em idade escolar

Pesquisa nacional revela que, apesar de sofrerem com condições...

Artigos Relacionados

Destaque do Editor

Popular Categories

Mais artigos do autor