Desmemória

Por Wanda Camargo*

É bem conhecida a tendência humana, principalmente no coletivo das comunidades, ao esquecimento. Tudo o que nos parece inadequado, horrível ou pelo menos difícil de aceitar tende, em muitos poucos anos, a ser apagado da memória.

Pouco sabemos e pouco estudamos em nossas escolas sobre a Guerra do Paraguay, assunto de alguns estudiosos e historiadores. Gradativamente fomos esquecendo barbaridades cometidas, crianças com armas na mão, chacinas absurdas, heróis criados para ajustar vitórias que mais pareceram covardias.

Outro assunto abordado muito paralelamente nos livros escolares é a escravidão, como se o tema fosse impróprio para crianças – e na verdade imprópria foi sua existência –, currículos escolares tocaram muito superficialmente sobre uma princesa redentora, uns poucos paladinos de sua extinção, algumas tentativas tímidas de ir suprimindo esta nódoa aos poucos, como o Ventre Livre, por exemplo, como se fosse possível uma criança ser livre sem escola, sem poder afastar-se de sua mãe escravizada, sem aprender qualquer profissão que não fosse auxiliar o demais escravos da casa. Alguns filhos de dois cativos, outros filhos de uma subjugada e um senhor; e mesmo dentre esses últimos poucos tiveram a sorte de ser amados verdadeiramente, e portanto alfabetizados e educados para algum afazer fora do âmbito doméstico.

Isso, evidentemente, perpetuou o descalabro, que ainda se mantem, de forma oculta ou até às claras, como vemos não tão raramente quando alguma fazenda um pouco distante das grandes cidades é fiscalizada. Um grande personagem de nossa história chegou inclusive a mandar queimar milhares de documentos, apagando registros de muitas pessoas e suas famílias, e impedindo que no futuro pudessem compreender suas trajetórias e, tão grave quanto, pudessem pleitear indenizações justas. Assim, desde o final do século XIX, iniciamos a produção, por meio de textos literários, artigos jornalísticos e estudos, algumas narrativas sobre a identidade social e cultural brasileira como “branca”, por recebermos imigrantes portugueses e não portugueses de origem europeia.

Da mesma forma, produzimos um apagamento generalizado do que foi o processo de governo militar a que o país foi submetido, e assim como hoje muitos negam a existência do Holodomor e do Holocausto, e seus milhões de mortos, negamos as perseguições, torturas e desaparecimentos de milhares.

No Brasil foi instalado, em nome da Segurança Nacional, um complexo sistema repressivo para combater aquilo a que se denominava subversão e reprimir qualquer atividade considerada suspeita de ser potencialmente perturbadora da ordem. Para isso foi criado o Serviço Nacional de Informações – SNI, e este organismo subordinou rapidamente todos os outros órgãos repressivos, como os centros de informações das três armas, a polícia federal e as polícias estaduais. Para integrá-los, o Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna, DOI-CODI, aglutinando representantes de todas as forças policiais, que agiam de forma planejada e orientadas pela lógica da disciplina militar, como se o país estivesse numa guerra revolucionária, e seus métodos incluíam atividades no mínimo de extermínio e violências.

O tempo passa e a memória fica mais diluída, os detalhes se perdem, as narrativas mais edulcoradas tendem a prevalecer, como se impossibilitados de enfrentar aquilo que lamentavelmente fizemos. Chegamos ao paroxismo de elogiar publicamente torturadores, e considerar que o tempo passado era maravilhoso e cheio de “pessoas de bem” – como neste recente e inacreditável caso do político que se elegeu defendendo a família para em seguida matar seu enteado – aos quatro anos de idade!

Em breve, professores de História parecerão fora da realidade ao relatar fatos acontecidos, dos quais não nos orgulhamos e queremos desbotar na explanação de nossas vidas, uma desmemória que constituirá o cerne desse período de trevas.

 

Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.

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