*Daniel Medeiros
I-Juca Pirama รฉ o poema de Gonรงalves Dias que conta a histรณria de um รญndio tupi aprisionado pelos timbiras e que, diante da morte, chora. Por isso, seu prรณprio pai o chama de covarde. Depois, Juca mostra sua coragem e vira exemplo. Sua histรณria passa a ser contada nas rodas de fogueira pelos รญndios mais velhos, que testemunharam sua experiรชncia de superaรงรฃo. No inรญcio do dรฉcimo canto, diz o poema:
Um velho Timbira, coberto de glรณria,
Guardou a memรณria
Do moรงo guerreiro, do velho Tupi!
E ร noite, nas tabas, se alguรฉm duvidava
Do que ele contava,
Dizia prudente: – “Meninos, eu vi!โ
A frase โMeninos, eu vi!โ apareceu-me em meio a um cochilo de meio de sรกbado – menos por sono e preguiรงa e mais para passar o tempo de outro fim de semana em casa – antes do cafรฉ do fim da tarde, passado fresquinho, pra recuperar um pouco o รขnimo da semana gasta com trabalho, temores e o testemunho da tenebrosa administraรงรฃo federal. A frase me fisgou e remeteu-me ao personagem da novela com o grande ator Luรญs Gustavo que, desde o fim dos anos 60, com o impagรกvel Beto Rockfeller, fazia gato e sapato com seus personagens, e que viveu na dita novela, chamada O Salvador da Pรกtria, exibida no ano da primeira eleiรงรฃo direta para presidente no paรญs da minha vida, o radialista Juca Pirama, inspirado no personagem do poeta maranhense, que tanto cantou a Pรกtria e morreu pobre e doente como ela, em um naufrรกgio na costa de seu Estado natal.
A trama da novela foi inspirada em um texto de Lauro Cรฉsar Muniz, โo caso do Zรฉ Bigornaโ, e que virou um desses excelentes filmes nacionais que quase ninguรฉm viu. O personagem, Sassรก Mutema, interpretado por Lima Duarte, virou mania nacional. Assim como, no mesmo ano, virou hit a mรบsica da campanha de um dos candidatos pra presidente, composta por Hilton Acioli e inspirada na peรงa publicitรกria da campanha pelo โnรฃo” do plebiscito no Chile de 1988, que virou um filme magnifico, de 2012, dirigido por Pablo Larraรญn e que concorreu ao Oscar de melhor filme estrangeiro. No plebiscito chileno, o โnรฃoโ venceu e significou o fim do fim do ditador Pinochet. Por aqui, o candidato da musiquinha perdeu, porque boa parte do eleitorado se convenceu de que ele implantaria o comunismo se chegasse ao poder. “O homem esquece mais facilmente a morte do pai do que a perda do patrimรดnioโ, jรก lembrava Maquiavel. Pois รฉ. O candidato anticomunista eleito confiscou a poupanรงa dos medrosos e fez um dos piores governos da histรณria da Repรบblica. E acabou afastado do cargo pela mesma razรฃo pela qual chegou a ele.
โMeninos, eu vi!โ
Na novela, foi Luรญs Gustavo quem sugeriu o nome de seu personagem, que deveria ser um outro Juca. E, graรงas a ele e a essa fresta midiรกtica, o poeta romรขntico entrou no lar dos brasileiros e brasileiras, com seus รบltimos cantos.
Lembrei-me tambรฉm, jรก acordado e depois do cafรฉ com uns bolinhos de polvilho seco que estavam dando sopa na cozinha, dos versos do Tom Jobim, da mรบsica chamada โMeninos, eu viโ:
โTambรฉm vi a cidade incendiada,
Eu tive medo.
Eu vi a escuridรฃo
Eu vi o que nรฃo quisโ.
E lembrando dos versos dessa canรงรฃo – e porque estava sozinho na cozinha naquele momento, o povo de casa em seus quartos ou na sala de televisรฃo, maratonando (esse verbo que ficou engraรงado porque engorda ao invรฉs de emagrecer) -, eu me disse: tambรฉm eu ando vendo tanta coisa, poeta, e tambรฉm eu queria ver homens felizes, um que fosse, como em sua canรงรฃo que diz: โE acho que enfim eu vi o homem ser feliz
Ah! Juro que um dia eu vi o homem ser felizโ.
Mas, apesar da beleza da canรงรฃo do Tom, nรฃo consigo afastar de mim o clima do Juca Pirama:ย โmeu canto de morte, guerreiros, ouviโ.
Terminei o cafรฉ, pus รกgua na xรญcara, guardei os biscoitos de polvilho e fui olhar o fim do dia que se oferecia sem cobrar nenhum cobre aos olhos curiosos. Mas nรฃo conseguia fixar a paisagem, invadido por meus temores e pensamentos: meninos, o que verei alรฉm das mortes, do sofrimento,ย do desgoverno que torna tantas vidas mais incertas, com a fome que volta, a doenรงa que ri, sarcรกstica, dessa lideranรงa fรบtil e descarnada?
Ou, como disse oย guerreiro tupi:
“Que novos males nos resta de sofrer? โ que novas dores, que outro fado pior Tupaฬ nos guarda? โ As setas da aflicฬงaฬo jaฬ se esgotaram, nem para novo golpe espacฬงo intacto em nossos corpos resta”.
Na novela, o personagem Juca Pirama รฉ um radialista de moral rasa, mas de discurso intenso. Populista, manipula os ouvintes com denรบncias de corrupรงรฃo, mas รฉ ele prรณprio corrupto e violento. Quer o poder sem medir esforรงos e sem limites aparentes.
No ano de 1989, um dono de emissoras de rรกdio e TV, que nรฃo media esforรงos para alcanรงar seus objetivos, fez uma campanha prometendo acabar com a corrupรงรฃo e defender os valores da famรญlia e da religiรฃo e se elegeu presidente. Por muitos meses foi, na imaginaรงรฃo frรกgil do brasileiro sem cidadania, o salvador da pรกtria que o roteiro da novela nรฃo previu. E que insiste em renascer, como praga do Egito, a cada trinta anos.
Deixo a varanda e venho escrever esse texto com o som do jingle na minha cabeรงa, com a dor de amores de Jobim, com a vitรณria bonita dos chilenos contra o ditador, com a esperanรงa de que รฉ dessa barafunda que se faz a vida e que nela ainda encontraremos uma saรญda mais feliz.
Meninos, vocรชs verรฃo!
* Daniel Medeiros รฉ Doutor em Educaรงรฃo Histรณrica e professor no Curso Positivo.
danielmedeiros.articulista@gmail.com
@profdanielmedeiros
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**Artigos de opiniรฃo assinados nรฃo reproduzem, necessariamente, a opiniรฃo do Curso Positivo.