José Pio Martins*
A palavra “humanidade” é ambígua. Sem prejuízo de outros, ela tem pelo menos dois significados. O primeiro para designar o conjunto de seres humanos existentes na Terra. O segundo, como designador das características particulares e específicas da natureza humana. Para os fins aqui propostos, considerarei “humanidade” como as características do ser humano que fazem sua vida ser mais que apenas a sobrevivência física.
A vida eleva-se além da necessidade de alimento, abrigo e repouso, e a realização da “humanidade” do humano requer os chamados “bens do espírito”: a linguagem, a leitura, o conhecimento, a música, o teatro, o cinema, as relações sociais, o lazer, a religião, as artes, os esportes e outras atividades além da mera existência do corpo.
O humano, dotado que é de consciência, linguagem, memória, emoções, costumes e código moral, não nasce feito e acabado. Na expressão de Ortega y Gasset (1833-1955), “a vida nos é dada, mas não nos é dada pronta” e, conforme Kant (1724-1804), “o homem é o único animal que precisa ser educado”. No transcurso de seu desenvolvimento e autoconstrução, o homem tem, nos bens culturais, os meios para exercer sua humanidade, desde os bens da natureza até aqueles construídos por obra do próprio homem.
O conjunto de bens e serviços que a humanidade, como conjunto de humanos, inventou, desenvolveu e aperfeiçoou, para seu próprio lazer e desfrute emocional e espiritual, é enorme e variado. Música, pintura, literatura, cinema, teatro, escultura, dança, esportes, rituais, contatos com a natureza e outras atividades e coisas são bens culturais que devem ser produzidos, desfrutados, preservados e legados às gerações futuras.
Há muito que se pode falar das formas de realização da humanidade, individual e coletiva. A produção, manutenção e importância dos bens culturais podem ser analisados como um enorme setor da economia, que gera produto, emprego, renda, impostos, e fazem parte do crescimento econômico e do desenvolvimento social. Desse ponto de vista, a cultura pode ser vista como os demais setores econômicos e analisado qual deve ser o papel do Estado para o setor cultural.
Recordo a polêmica, em 2010, sobre a proposta de recriar a Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes S.A.), como uma estatal subsidiada com dinheiro público. Na época, escrevi propondo discutir qual deve ser o papel do governo em relação à cultura, a partir de três hipóteses: a) não se envolver; b) controlar e dominar; c) apoiar e incentivar.
De início, sou contra a opção “b” (controlar e dominar), pois não há anjos na Terra. Controlar e dominar o que pode e o que não pode ser feito em matéria de cultura é coisa de regimes ditatoriais e/ou totalitários. Todos os governos ditatoriais, de esquerda ou de direita, sem nem uma só exceção, controlaram, dominaram e censuraram o vasto espectro do que se pode chamar de “cultura”.
A opção “a” (não se envolver) implica deixar que a produção, manifestação e consumo de todas as formas de cultura sejam resolvidos pelo mercado, livremente e sem dinheiro público. Neste caso, embora predomine a liberdade, sem verbas estatais, pois quando o governo subsidia ou financia bens culturais, ele sempre tem inclinação para controlar e censurar, sob o poder de decidir que projetos aprovar e quais negar.
Em certo sentido, a total omissão do Estado não é boa. Por exemplo, um museu que guarda, protege e conserva objetos históricos pode necessitar que a sociedade banque sua existência, diretamente ou via tributos. Já no caso de um filme ou show de rock, embora sejam bens culturais, a essência e a finalidade são totalmente diferentes.
No ano de 2003, após a derrubada de Saddam Hussein, o Museu de Bagdá foi saqueado e destruído, e mais de 170 mil peças desapareceram, muitas vindas desde a antiga Mesopotâmia, região considerada o berço da civilização, onde surgiram as primeiras cidades, o primeiro alfabeto e o primeiro código jurídico. Uma parte da história humana foi simplesmente banida.
Esse é um exemplo de “espaço cultural” que exige a intervenção do governo para guardar, manter, conservar e garantir as peças contra deterioração, roubo ou destruição, pois não se trata de um assunto comercial, mas sim da preservação da memória e da história. Há outros bens e atividades culturais que precisam do apoio estatal.
Assim considerando o amplo espectro do que se pode chamar de “bens culturais”, em uma sociedade livre, a melhor opção é a “c” (apoiar e incentivar). Mas o governo deve ser submetido a leis que regulem o que deve ser objeto de apoio e incentivo estatal, ao tempo em que impeça proibição e censura personalíssima.
A velha Embrafilme foi criada em setembro de 1969, em pleno regime militar, e extinta em março de 1990, no governo Collor, e sempre foi criticada à esquerda e à direita. Os críticos sempre a acusaram de beneficiar quem aderia ao pensamento do governo. Ao terem autoridade sobre o dinheiro, os burocratas detinham o poder de controlar e censurar.
A recriação da Embrafilme foi proposta em 2009, o que não ocorreu, pois já havia a Agência Nacional do Cinema (Ancine), criada em 2001 como órgão oficial de fomento, regulação e fiscalização das indústrias cinematográfica e videofonográfica. Um dos argumentos foi que cinema comercial e de entretenimento é mercadoria, que deve se submeter ao mercado: havendo clientes, será produzido; não havendo, não será.
Um país preocupado com a elevação intelectual do povo deve incentivar e fomentar bibliotecas, museus históricos, preservação de obras antigas, documentos e objetos de sua memória. Mas os indivíduos não devem esperar que o Estado lhes garanta todos os bens culturais. Há que haver critérios e regras.
José Pio Martins, economista, reitor da Universidade Positivo.