A antiguidade do novo

*Daniel Medeiros

Quando ouvi pela primeira vez a teoria de Demรณcrito de que tudo รฉ feito de รกtomos e que somos uma espรฉcie de quebra cabeรงas do acaso, foi um estranhamento incrรญvel. Atรฉ passei a entender melhor essas famรญlias religiosas querendo educar os filhos em casa, na tranquila ideia da transcendรชncia e da criaรงรฃo divina, da vida, da morte e da vida depois da morte. Para Demรณcrito, a vida e a morte nรฃo passam de agregaรงรฃo e desagregaรงรฃo dos corpos, e de novo os รกtomos que estavam em nรณs e que รฉramos nรณs, seguem seu caminho que รฉ movimento e apenas movimento. Hobbes, no sรฉculo XVII, via nesse movimento sem destino a ideia mesma da Liberdade e temia que jamais poderรญamos ter uma vida estรกvel em sociedade sem a existรชncia de um corpo artificial que aprisionasse esses รกtomos e detivesse esse รญmpeto de ir viver alhures. Curioso como um conceito como o de Estado absoluto – e o da Liberdade como um risco extremo – pudessem ter surgido daรญ. Mas, como os รกtomos, agora estou divagando. O que me causou o tal estranhamento foi a ideia de que os รกtomos que compรตem meu corpo sรฃo os mesmos que transitam por aรญ desde o inรญcio dos tempos, isso considerando que tenha existido um inรญcio e o tal Big Bang nรฃo tenha sido apenas um engarrafamento de รกtomos em um cruzamento de universos com o semรกforo quebrado. Ou seja, provavelmente tenho รกtomos no joelho de 4 bilhรตes de anos, um dos lรณbulos da minha orelha pode ter รกtomos de 6 bilhรตes de anos e certamente hรก alguns รกtomos no meu cรฉrebro que sรฃo da primeira leva, jรก bem esquecidinhos de tudo.

Segundo Spinoza, que desenvolveu uma das mais inventivas formas de associar Dโ€™us com a teoria de Demรณcrito, somos um modo de expressar os atributos da substรขncia Dโ€™us, isto รฉ, a prรณpria Natureza. Somos uma das mรบltiplas expressรตes dessa substรขncia que รฉ uma sรณ. Ou seja: leรฃo, girafa, golfinho e mesmo aqueles mais estranhos: coala, texugo, seriema e o indecifrรกvel ornitorrinco, passando pelos minรบsculos e devastadores seres que povoam nosso corpo ou vagueiam invisรญveis pelo ar, todos somos apenas um modo de existir da Natureza.

Mas entรฃo, nada nos distingue? Nรฃo podemos, em nenhum momento, fazer um discurso nos gabando de nossas qualidades exclusivas e intransferรญveis?

Atรฉ que se prove em contrรกrio, hรก duas caracterรญsticas no sopรฃo de รกtomos que forma tudo, no jogo aleatรณrio no qual fomos compostos, que nos destaca: saber que tudo isso estรก acontecendo e poder falar e escrever sobre isso. Nossa consciรชncia e nossa capacidade de comunicaรงรฃo complexa parece que รฉ sรณ nossa, pelo menos da forma como fazemos.

E entรฃo vivemos a pensar e a falar sobre a vida, sobre a morte, sobre nosso papel nessa existรชncia, sobre como devemos deixar nossa marca, como – e aqui uso a parรณdia de Nietzsche – se mosquinhas se reunissem no canto da parede de um grande salรฃo abandonado e tratassem dos destinos do cosmos.

Trazemos toda a antiguidade do universo em nรณs e esse fato deve ter alguma influรชncia que se manifesta nesse desejo de estar entre, de fazer parte, de acreditar que temos alguma importรขncia para o funcionamento das coisas. E talvez tenhamos. Quem sabe, na lรณgica spinoziana, Dโ€™us, isto รฉ, a Natureza, tenha reservado para a nossa espรฉcie, nessa conjunรงรฃo especรญfica de รกtomos, uma funรงรฃo รบnica: testemunhar. Testemunhar nossa risรญvel crenรงa na nossa superioridade sobre as outras formas de vida; testemunhar nossa falta de empatia e compaixรฃo com todos os nossos irmรฃos de รกtomos; testemunhar nossa falta de perspectiva histรณrica de bilhรตes de anos de formaรงรฃo e a inevitรกvel perda da oportunidade de tirar daรญ liรงรตes preciosas para agir para preservar essa caรณtica e exuberante beleza no exรญguo, ridรญculo tempo no qual dispomos dessa consciรชncia das coisas, antes de nos tornarmos outra vez รกtomos soltos e irmos habitar um pรฉ de jabuticaba, um pรกssaro migrante, um parasita intestinal ou uma touceira soprada por ventos saturnais em alguma planรญcie gelada de Urano.

*Daniel Medeiros รฉ doutor em Educaรงรฃo Histรณrica e professor no Curso Positivo.
danielmedeiros.articulista@gmail.com
@profdanielmedeiros

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**Artigos de opiniรฃo assinados nรฃo reproduzem, necessariamente, a opiniรฃo do Curso Positivo.

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