A pandemia e outros futuros

Anderson Marcos dos Santos*

 

O impacto global do coronavรญrus tem servido para uma profรญcua reflexรฃo sobre o modo de existรชncia individual e coletivo dos humanos no Planeta. Uma profusรฃo de textos acadรชmicos e nรฃo acadรชmicos tratando desse tema surgiram desde os primeiros dias da pandemia, apresentando enfoques e perspectivas diversos que se alteraram, nรฃo sรณ de autor para autor, mas tambรฉm conforme a doenรงa se espalhava e seus efeitos traziam inseguranรงa diante do aumento do nรบmero de mortes e do abalo na economia mundial e na saรบde mental, com distanciamento social forรงado. Podemos observar reflexรตes que vรฃo do otimismo de uma possรญvel mudanรงa no sistema econรดmico global, ao pessimismo, com a leitura de que estarรญamos diante do prenรบncio de uma catรกstrofe maior: a ambiental.

O filรณsofo italiano Franco Berardi (Bifo), por exemplo, afirma que โ€œfaz tempo que a economia mundial concluiu sua parรกbola expansiva, mas nรฃo conseguimos aceitar a ideia da estagnaรงรฃo como um novo regime a longo prazo. Agora o vรญrus semiรณtico estรก nos ajudando a fazer a transiรงรฃo para a imobilidadeโ€. Ele, entรฃo, conclui que entramos em uma psicodeflaรงรฃo, uma desaceleraรงรฃo do modo de vida imposto pelo capitalismo contemporรขneo. Bruno Latour, por sua vez, fala de um ensaio geral da crise de saรบde, que deveria nos preparar para as mudanรงas climรกticas.

De fato, a pandemia da Covid-19 impacta as relaรงรตes sociais e econรดmicas e a subjetividade por elas produzida โ€“ e nos coloca a questionarmos a forma como lidamos com a natureza; o que faz necessรกrio pensarmos o vรญrus nรฃo apenas como um simples elemento natural, mas tambรฉm como um fenรดmeno sociotรฉcnico, pois surge em Wuhan, na China, e na velocidade dos voos internacionais ele se espalha pelo mundo; polรญtico, porque a resposta que foi dada em cada paรญs รฉ muito diferente, inclusive com paรญses, como o Brasil, que nรฃo deram resposta nenhuma; econรดmico, jรก que chega pelas pessoas que podem pagar pelos voos internacionais e vai se espalhar e atingir mais duramente as camadas mais pobres, que precisam se expor aos riscos para continuar trabalhando e nรฃo tรชm os mesmos meios para o tratamento mรฉdico.

Assim, o vรญrus nos coloca diante do espelho para que possamos ver o limite, que talvez jรก ultrapassamos, da viabilidade do modo de vida que construรญmos. Modo que se estrutura a partir de duas grandes fraturas: uma que separa humanos e nรฃo humanos e outra que separa os humanos dos โ€œmenos humanosโ€.

Os humanos se separam dos nรฃo humanos de duas maneiras: por ruptura com os objetos tรฉcnicos, e com os objetos orgรขnicos nรฃo humanos. Isso em razรฃo da racionalidade tecnocientรญfica instrumental estar entrelaรงada ร  racionalidade econรดmica, o que resulta em uma espรฉcie de lรณgica operacional que transforma tudo em objeto suscetรญvel de manipulaรงรฃo, recombinaรงรฃo e reprogramaรงรฃo. Tudo se passa como se o planeta inteiro fosse um recurso para o capital e a tecnociรชncia.

Diante disso, alguns teรณricos colocam de uma maneira interessante que, hoje, nรณs batalhamos contra um vรญrus, quando, em termos de natureza, talvez, nรณs sejamos o pior vรญrus que existe. Onde o humano chega, ele destrรณi quase toda a vida existente.

A outra ruptura se dรก entre aqueles que a ideia de humanidade moderna constituiu como humanos e aqueles menos humanos. Trata-se de uma ideia colonial que nรฃo admite outras humanidades senรฃo essa humanidade tecnolรณgica capitalista, que impรตe como รบnica forma possรญvel de ser no mundo a forma individual de consumidor no mercado global.

O vรญrus semiรณtico, diferente do que afirma Bifo, nรฃo parece estar freando a aceleraรงรฃo tecnolรณgica das subjetividades individuais, mas nos oferece a oportunidade, mais uma vez, de mudarmos nossa relaรงรฃo entre humano e nรฃo humanos e entre as diferentes humanidades. Precisamos, como ensina o pensador indรญgena Ailton Krenak, pensar na Terra โ€œnรฃo sรณ na dimensรฃo da subsistรชncia e na manutenรงรฃo das nossas vidas, mas tambรฉm na dimensรฃo transcendente o que dรก sentido ร  nossa existรชnciaโ€. Precisamos construir outros futuros.

*Anderson Marcos dos Santos, doutor em Sociologia, mestre em Direito, รฉ coordenador adjunto e professor do mestrado em Direito da Universidade Positivo (UP).ย 

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