Mateus Senna Favero*
Em โO mito de Sรญsifoโ, Albert Camus alega que a questรฃo crucial da filosofia รฉ: vale a pena para o ser humano, ao constatar a realidade que se lhe oferece, viver? Ou seria melhor matar-se? O existencialista francรชs รฉ enfรกtico ao afirmar que o suicรญdio nรฃo รฉ o caminho para fugir do sofrimento. Isso porque buscar a morte รฉ imaginar que algo pode ser melhor que a vida; รฉ ter esperanรงa de que a dor acabarรก. Ora, a esperanรงa jรก nรฃo nos cabe, mas sim o absurdo.ย
Hรก pouco mais de um ano, surgia como antagonista da narrativa humana o novo coronavรญrus. Dentre todos os problemas pelos quais nรณs, brasileiros, temos passado nos รบltimos tempos, jamais se poderia crer que a Covid-19 chegaria para tomar cena e, como numa novela das nove em que a audiรชncia estรก em queda, mudasse completamente o enredo para clamar por uma atenรงรฃo que estava voltada a uma figura malfazeja, deselegante e nada carismรกtica. Como se tal รฉpico ร s avessas pudesse piorar, esse personagem, com medo da deposiรงรฃo, decidiu aliar-se ร trama do novo vilรฃo. Desde entรฃo, nossas vidas, de cinza, chegaram ao extremo breu. Sozinhos no escuro, qual bichos-do-mato.ย
No inรญcio, o histรณrico cristรฃo, o romantismo, o excesso de literatura distรณpica de mรก qualidade nos fez pensar que a chama da comunhรฃo, o amor entre os semelhantes e a coragem nos salvariam do mal que nos rondava. Mas nรฃo tardamos a perceber que os tentรกculos daquilo que enfrentamos eram compostos por muitos mais do que supรบnhamos, uma evoluรงรฃo antropomรณrfica de Cthulhu, o horror que nem Lovecraft poderia criar.
Mas nรฃo se trata apenas de descrenรงa, jรก que a fรฉ, a esta altura, รฉ pura ignorรขncia. Simplesmente a vida como ela รฉ. E agora? Nรฃo adianta querer morrer em um mar de lรกgrimas. Nรฃo adianta querer fugir no cavalo amarelo. O que nos sugere entรฃo Camus sobre vivermos embebidos no licor venenoso da trรกgica condiรงรฃo humana? Resistir. Foi o que fez Sรญsifo, ao ser condenado a carregar aquela pedra pela eternidade, afinal, โnรฃo hรก destino que nรฃo se supere com o desprezoโ.
Imaginemos a insatisfaรงรฃo dos egรณlatras deuses do Olimpo ao verem sua criatura negando-se a sofrer com o castigo que lhe impuseram. Falcรฃo, ex-lรญder do grupo O Rappa, grita a essรชncia do homem absurdo camuniano, sua vontade era de โexplodirโ, ele โia explodir, mas eles nรฃo vรฃo ver os meus (os nossos) pedaรงos por aรญโ. Enquanto resistirmos, eles, esses abutres que hoje nos rodeiam, passarรฃo.ย
Viver no absurdo รฉ constatar a realidade e enfrentรก-la. Da maneira que quiser, mas enfrentรก-la. No meu caso, opto pelo que sugeriu o agora saudoso Paulo Gustavo, rindo. Assim como Sรญsifo despertou a ira dos deuses que nรฃo o puderam vencer nem mesmo com a pena eterna, nos meus (nos nossos) algozes desejo identificar o semblante rancoroso dos que, ao descobrirem que o mundo, apesar de suas enfadonhas tentativas, um dia (nรฃo sei quando) voltarรก a ser uma mistura de cores, culturas, valores, risos e vidas que eles tanto julgam degenerados. A essas pedras, no caminho e sobre nossas costas, deixo o meu mais mordaz e singelo riso de deboche, porque sei que, apesar delas, amanhรฃ รฉ outro dia.ย
*Mateus Senna Favero รฉ professor e corretor de Redaรงรฃo do Ensino Mรฉdio do Colรฉgio Positivo.
**Artigos de opiniรฃo assinados nรฃo reproduzem, necessariamente, a opiniรฃo do Colรฉgio Positivo.