Fernando Mânica*
Uma vez mais tramita no Congresso Nacional a proposta de instituir o chamado “distritão”. Trata-se de um sistema eleitoral no qual os membros de cada Casa Legislativa são escolhidos por maioria simples. O eleitor vota no seu candidato predileto sem nenhuma preocupação com partido político, quociente eleitoral, quociente partidário ou puxadores de votos. Os mais votados são eleitos. Se aprovado, o estado de São Paulo elegerá, por exemplo, os 70 candidatos a deputado federal e os 94 candidatos a deputado estadual mais votados em 2022. A fórmula é simples, mas seu resultado é nocivo à democracia.
Em primeiro lugar, alguns dados merecem destaque. O “distritão” é usado em países sem grande expressão, como as Ilhas Pitcairn, a Ilha de Vanuatu, a Jordânia e o Afeganistão. Na década de 1990, o Japão abandonou o “distritão” sob a justificativa de que a disputa individual ao Legislativo favorecia práticas de corrupção eleitoral. No Brasil, a proposta foi rejeitada pelo plenário da Câmara dos Deputados em 2017.
Em segundo lugar, deve-se reconhecer que o sistema eleitoral adotado no país permitiu grandes distorções nas eleições para o Legislativo. Quem não se recorda de Enéas Carneiro que, em 2002, teve mais de 1,5 milhão de votos e elegeu, com ele, outros cinco candidatos de seu partido, o desconhecido PRONA? Na ocasião, um dos eleitos para deputado federal por São Paulo teve apenas 275 votos. Isso ocorreu porque o número de vagas conquistadas por cada partido (quociente partidário) é definido pela soma dos votos de todos os seus candidatos. Assim, uma votação pessoal estrondosa aumenta o número de vagas do partido, as quais eram ocupadas pelos candidatos mais votados da chapa, independentemente do número total de votos de cada um.
Entretanto, tal distorção foi atenuada. Dentre outras mudanças, desde as eleições de 2018, a legislação eleitoral exige que qualquer candidato ao Legislativo, para ser eleito, precisa fazer o mínimo de 10% do quociente eleitoral (total de votos válidos na eleição dividido pelo número de vagas em disputa). Assim, se a nova regra valesse em 2002, Enéas não teria eleito sequer um outro candidato do PRONA, já que nenhum deles superou os 10% do quociente eleitoral naquela eleição (cerca de 28 mil votos).
Em terceiro lugar, o voto distrital fortalece a atuação política individual. Ainda que a maior parte da população brasileira não confie nos partidos políticos, a democracia depende de seu fortalecimento. Direitos e interesses de minorias precisam ser representados no debate político e, muitas vezes, a soma de vozes de pequena expressão individual consegue ser ouvida nas eleições e nas Casas Legislativas. Além disso, o “distritão” favorece candidaturas à reeleição de candidatos já conhecidos, bem como a eleição de celebridades dedicadas à defesa de coisa alguma. Pior que isso. O “distritão” amplia a competição interna entre candidatos de um mesmo partido durante o processo eleitoral, favorecendo ainda mais a autodestruição partidária.
Em quarto lugar, o “distritão” prejudica lideranças locais. A competição individual por votos em todo um município ou estado enfraquece representantes de determinado bairro ou região de um estado. Assim, os interesses circunscritos a determinados territórios de baixa densidade populacional, mas essenciais às pessoas daquela região, não serão representados nas Casas Legislativas. Isso porque o voto distrital favorece a eleição de candidatos com ampla capilaridade eleitoral, deixando de lado a discussão sobre assuntos de interesse das diversas localidades de um estado ou município.
O “distritão”, como fórmula mágica que corrige distorções do sistema proporcional hoje adotado no Brasil, traz consigo não apenas a simplificação da conta para escolha dos candidatos. Traz também o empobrecimento da discussão necessária ao processo eleitoral. Mais do que isso, fragiliza direitos e interesses fundamentais de minorias sociais ou territoriais, que precisam ser defendidos nas Casas Legislativas Brasil afora.
O produto da personalização da política e da simplificação do debate eleitoral será, sempre, o enfraquecimento da democracia. Ao contrário do que propõe o “distritão”, o fortalecimento da democracia demanda o reconhecimento de que o processo eleitoral envolve uma complexa disputa entre ideias e não uma simples competição entre pessoas. Essa é a fórmula.
*Fernando Mânica é doutor pela USP e professor do Mestrado em Direito da Universidade Positivo.