Cringe

Daniel Medeiros*

 

Ouvi esses dias a palavra โ€œcringeโ€ e aprendi que se trata de uma discussรฃo de jovens de 15 anos em relaรงรฃo a jovens de 25 anos e que o objeto do debate sรฃo as condutas consideradas pelos primeiros como โ€œvergonhosasโ€. Os segundos se defendem afirmando que seus gostos sรฃo marcas identitรกrias e que sentem muito orgulho delas. Aprendi tambรฉm que as redes sociais bombaram por causa desse confronto durante cerca deโ€ฆ trรชs dias. No momento em que escrevo sobre isso, o tema jรก nรฃo รฉ relevante, como, de resto, parece que nunca foi.

Eu, no entanto, embarco com gosto no episรณdio e ponho-me a matutar: vivo jรก perto dos sessenta anos, vejo-me como um terreno com vรกrias camadas geolรณgicas superpostas, sem que pertenรงa, como unidade, a nenhuma delas. Vi, certa vez, esse recorte em uma pedra de milhรตes de anos e um amigo geรณlogo explicou-me de que fase era cada uma delas. Vi as camadas e vi a pedra. Chamei de pedra.

Esse รฉ o ponto do meu ensimesmamento. Nรฃo sou mais a crianรงa do final dos anos sessenta, que ainda tem na memรณria o eco do pai gritando feito louco depois do gol do Clodoaldo. Mas sou. Nรฃo sou mais o adolescente que vibrou com o gol do Kempes, depois do bate-rebate com o goleiro e com os zagueiros da Holanda, e com o delรญrio dos argentinos, cobrindo o estรกdio com papeizinhos picados, tremendo tudo ao redor. Mas sou. Nรฃo sou mais o jovem professor que dava aula na escola particular enquanto, na rua de trรกs, o carro de som chamava os estudantes para irem ร s ruas e pintarem os rostos e tirarem o presidente corrupto do poder. Bom, creio que meu ponto de vista jรก estรก demonstrado.

Incorporo, como um cavalo de vรกrias entidades, muitos tempos e muitas marcas dos tempos em mim, sem que eu deixe de considerar que sou eu mesmo, o mesmo menino que ganhou um time de botรฃo para brincar na varanda com os amigos e, desde entรฃo, nunca deixou de torcer pelo time cujas carinhas estampavam as pequenas rodas brancas feitas de osso por um artesรฃo habilidoso cujo nome gostaria de ter sabido para agradecer e compartir as alegrias de minhas vitรณrias.

Na verdade, tudo isso me parece evidente e essa histรณria de โ€œcringeโ€ soa quase um apelo, um pedido de ajuda, como se a falta de atenรงรฃo e, principalmente, a falta de memรณrias das experiรชncias nรฃo vividas ou nรฃo percebidas, criasse uma sombra em torno da prรณpria pessoa e impedisse que ela se visse, se reconhecesse, nรฃo fosse pelo gesto repetido pelos outros, a roupa usada pelos outros, a frase dita pelos outros, a mรบsica ouvida pelos outros e nos quais ela, enfim, percebe que esteve ali e que, portanto, deve ser desse jeito. Por isso, essa repulsa pelos gestos, roupas, frases e mรบsicas dos outros que nรฃo sรฃo os outros dele, da idade dele, da paisagem em torno dele. Trata-se de um esforรงo de manutenรงรฃo da identidade tรฃo precรกria, tรฃo fraquinha, que pode, a qualquer momento, ser soprada pelo riso de alguรฉm satisfeito com a sua prรณpria vida.

Disse, certa vez, Paulinho da Viola: โ€œmeu tempo รฉ hojeโ€. Nรฃo tenho um tempo, nรฃo sou de um tempo, nรฃo respondo por tempo nenhum. Por mim, viveria ainda muitos tempos, porque acho bacana essas nuances todas e, se nรฃo uso todas elas, nรฃo รฉ por reprovaรงรฃo, mas por desmazelo com certos cantos da vida, certos cรดmodos que visito pouco, mas nรฃo sem me recriminar por essa sovinice com a minha prรณpria possibilidade de estar no mundo.

Quem me falou doย  โ€œcringeโ€ ย foi uma amiga somente uns poucos anos mais nova que eu. Ela estava indignada e proferiu palavras nรฃo muito republicanas para os jovens que, pelo que entendi, achincalharam, entre outros, a Sandy e o Jรบnior. โ€œComo se hoje existisse coisa melhorโ€, reclamou exaltada. Achei graรงa. E lembrei, de novo, do Paulinho da Viola.

* Daniel Medeiros รฉ Doutor em Educaรงรฃo Histรณrica e professor no Curso Positivo.

danielmedeiros.articulista@gmail.com
@profdanielmedeiros

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**Artigos de opiniรฃo assinados nรฃo reproduzem, necessariamente, a opiniรฃo do Curso Positivo.

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