Daniel Medeiros*
No romance do espanhol Fernando Aramburu, a palavra Pátria é usada como pano de fundo para descrever os escombros de duas famílias arrastadas para a dor e para o sofrimento por acreditarem de maneira diferente sobre o seu significado. Como sabemos, a Espanha foi palco sangrento, devastador dessa palavra, que, junto com o vocábulo “religião”, é responsável por mortes incontáveis.
Pátria é uma palavra que deixou de ser uma indicação de algo, de um sentimento, de uma referência de lugar, para se tornar uma entidade espectral, capaz de criar identidades irresistíveis e, na mesma proporção, de potencializar ódios insuperáveis.
Miguel de Unamuno, um dos mais importantes pensadores espanhóis, foi vítima dessa avalanche reducionista chamada Pátria. Ortega Y Gasset, igualmente, sucumbiu à divisão inevitável entre os patriotas e os não patriotas, sem que houvesse a menor possibilidade de passar um raio de luz na fronteira entre ambas, nenhuma “terra de ninguém”, diante das trincheiras fortemente armadas das duas frentes que reivindicam, cada uma da sua maneira, a mesma primazia: ser o seu maior amante e defensor.
Como lembra o prêmio Nobel peruano, Mario Vargas Llosa, a Pátria é um chamado da tribo, um eco primitivo de épocas nas quais a identidade era condição de sobrevivência, diante de um mundo desconhecido e profundamente hostil. Estar “entre os seus”, reconhecê-los, mesmo à distância, pelos jeitos comuns e, depois, pelos símbolos comuns, era um conforto e um descanso: “ali estão os nossos”. Lógico que o reconhecimento desse “nós” só é possível pela existência do “eles”, e a manutenção desse “eles” tornou-se, com o tempo, tão importante quanto o aprendizado daquilo que definia o domínio do “nós”.
A formação das novas gerações, assim, exigiu um duplo reconhecimento e, para isso, as fronteiras precisavam estar sempre bem definidas, com valores excludentes, embora sempre alertas para o risco de subterfúgios e manipulações: “eles podem estar entre nós”. E o mundo avançou assim, carregando essa sina de ódio e medo, ao longo dos séculos, com a ideia da Pátria ganhando vulto e adquirindo conceitos precisos, associando-se a um território, língua, cultura, valores e times de futebol.
Poucos buscaram sobreviver a isso. Bertrand Russell, outro prêmio Nobel, quase teve a carreira destruída por insistir em se manter longe do discurso belicista. Na Alemanha, o romance “Nada de novo no Front”, foi censurado por descrever soldados com medo e hesitação, quando todos deveriam saber que o soldado que luta pela Pátria não teme a morte. Ao contrário, é uma honra e um dever. Por isso, o livro de Erich Marie Remarque era subversivo e perigoso, por incutir essas realidades no conceito de Pátria.
No romance de Aramburu, um homem que se recusa a pagar para os nacionalistas bascos é morto por eles. O filho de uma das famílias mais próximas desse homem está envolvido na sua morte e acaba preso. Muitos anos depois, o grupo terrorista desiste da luta armada e o que sobra são duas – entre tantas – famílias destruídas e amarguradas. Uma, pela inutilidade da perda do marido e pai querido. Outra, pelo abandono do seu “herói” – o filho destemido e fiel – que continuou apodrecendo na prisão.
Os nacionalistas de Franco tinham por lema: “viva a morte!”. Stalin, que construiu a bizarrice do “socialismo em um só país”, dizia que “uma morte é uma tragédia; um milhão de mortes, uma estatística”. Ninguém diz que vive pela Pátria, mas que mata e morre por ela. Por isso, creio que a palavra Pátria deveria ter um significado a mais no dicionário: lugar de mortes inúteis.
* Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
daniemedeiros.articulista@gmail.com
@profdanielmedeiros
**Artigos de opinião assinados não reproduzem, necessariamente, a opinião do Curso Positivo.