Daniel Medeiros*
Regina comeรงou a namorar Sรถren aos 14 anos. Paula se apaixonou por Bebeto aos 15. Era um amor invulgar, cujas palavras se esforรงam, mas quase sempre fracassam para descrever inteiramente. Se fosse possรญvel, melhor seria o retrato dos muitos brilhos dos olhares, ou a impressรฃo do calor das mรฃos sempre juntas. Aรญ sim, provavelmente, terรญamos um testemunho fiel. Mas esse registro, poucos os poetas, raros os filรณsofos, tรฃo proficientes no jogo intrincado dos vocรกbulos, conseguiram a proeza de traduzi-los. Mas eles existem, os poetas e os filรณsofos, para essa busca, para esse fim. Sem descanso.
Regina e Paula ficaram noivas de Sรถren e Bebeto, geradas e consumidas por aquele fogo heraclitiano que move mundos e nรฃo se extingue nunca. Move mundos, cria mundos, sem deixar nada no lugar. E, ainda amortecidas pelo assombro e quanto mais essa certeza se lhes afigurava como uma inevitabilidade, encheram-se de um medo insano: como sobreviveriam a essa promessa de nunca acomodarem-se, sem a chance dos domingos calmos ou das quartas-feiras com os amigos, mas apenas os olhares em brasa e os corpos รบmidos? Quem seria capaz de?ย
Afinal, entre o tremor/temor do sentimento, nรฃo resistiram ao clamor dionisรญaco e romperam o nรณ como um Alexandre exausto. โNรณs jรก รฉramos pessoas diferentes de quando nos apaixonamosโ, disse Bebeto. “Nรฃo hรก como viver o mesmo amor, nรฃo dรก para pensar que รฉ o mesmo amor quando jรก somos outros”, completou, o olhar desviando de seu interlocutor, como quem mente ou finge. Ou se envergonha. Ou se arrepende.
O pensamento talvez tenha sido mais forte, infiltrando-se nos momentos de torpor e de relaxamento: quando o fantasma do espรญrito interfere nas proezas do corpo, nรฃo se pode mesmo se acomodar apenas ao clamor do brilho do olhar. A intensidade vira incรดmodo e passamos a sonhar com a calma dos dias cinzas. Pensar รฉ para dentro, viver รฉ para fora e hรก imensas trincheiras entre esses dois campos minados. Bebeto confessou: โnossa paixรฃo era muito louca, nรฃo sobreviverรญamos a elaโ. Sรถren conjecturou: โnรฃo posso enredar Regina em minha teia de infortรบnios. Desse amor sรณ me resta a fugaโ. E fugiu, para Berlim e para a Filosofia.
Paula e Bebeto eram amigos de Milton, que os conheceu em uma praรงa da pequena cidade e se encantou vivamente com a alegria que emanava deles, do um sรณ que formavam. Depois, nรฃo se conformou com esse desfecho de separaรงรฃo. No violรฃo, vitimado por essa nรฃo aceitaรงรฃo da falta de completude que todo amor deseja mas que lhe รฉ tรฃo impossรญvel como o descanso de Sรญsifo, Milton gerou de si uma canรงรฃo, mas nรฃo conseguia colocar nela uma letra – pois para isso teria de ver como quem apenas observa e ele estava mergulhado tambรฉm naquele sentimento –ย e procurou, numa noite chuvosa, ele tambรฉm com os olhos chuvosos, o amigo Caetano para terminar a letra, para completรก-la. Nasceu assim Paula e Bebeto, um hino ao amor concebido e nรฃo realizado e, ainda assim, a melhor coisa que pode acontecer a um vivente. E na canรงรฃo tambรฉm ficou registrada, tรฃo bonita, tรฃo sincera, uma confissรฃo da impossibilidade da palavra tradutora: “diga qual a palavra que nunca foi ditaโฆโ
Regina casou com um antigo pretendente e viveram muitos anos juntos, atรฉ a morte deste. Sรถren escreveu centenas de textos buscando entender o indivรญduo e sua existรชncia, buscando uma saรญda para essa angรบstia fundadora que nos define e nos encerra. E, depois dele, nunca mais a Filosofia foi a mesma.ย
โExistirmos: a que serรก que se destina?โ, escreveu Caetano, em outra canรงรฃo, sobre outra forma de amor: a amizade, que a morte interrompeu. Mas isso jรก รฉ uma outra histรณria.
*Daniel Medeiros รฉ Doutor em Educaรงรฃo Histรณrica e professor no Curso Positivo.
danielmedeiros.articulista@gmail.com
@profdanielmedeiros
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**Artigos de opiniรฃo assinados nรฃo reproduzem, necessariamente, a opiniรฃo do Curso Positivo.