Daniel Medeiros*
Assim como Robert Johnson, vivemos em uma encruzilhada: nunca tantos declararam publicamente o propรณsito de serem felizes e, com isso, afastar as dores da vida; ao mesmo tempo, esses mesmos tantos desejam, junto com a felicidade, serem bem sucedidos e, para alcanรงar esse sucesso, reconhecem a necessidade deย superar todos os obstรกculos, custe o que custar, incluindo muita dor. โSรณ desistir รฉ que รฉ para sempreโ, repetem o mantra daqueles que afirmam ter obtido o tรฃo citado sucesso. A conclusรฃo desse silogismo รฉ: se vocรช for bem sucedido, serรก feliz. Mas haverรก a dor.
Toda uma cadeia de cursos e livros conhecidos como โauto-ajudaโ surgiram na esteira desse paradoxo. A Felicidade virou o santo Graal, o novo Shangrilรก, a Terra Prometida. Ao mesmo tempo, longe dos enjoativos 40 anos no deserto, a Nova Felicidade ocorre em meio a muito entretenimento, sem muito peso, sem muita demora, sem muita profundidade. Sucesso fast food, gamificado, como os cursos que afirmam transformรก-lo em psicanalista ou professor ou proficiente em qualquer lรญngua em quatro meses. ร sรณ ter vontade!
A Filosofia, desde que surgiu buscando encontrar alguma ordem (cosmos) racional nas coisas que nos rodeiam e nas coisas que rodeiam dentro de nรณs, igualmente deparou-se com a questรฃo do Fim – como o destino natural de nossas aรงรตes equilibradasย – e da Felicidade – como objetivo desejado para nossas vidas. Aristรณteles fundiu uma ideia na outra e chamou o Fim de Felicidade. Daรญ a sociedade moderna traduziu o Sucesso como Fim e definiu como Felicidade a aquisiรงรฃo e o consumo e, ainda mais recentemente, como visibilidade (ser famoso) e likes na internet.
Lembro-me aqui do Forrest Gump, na cena em que o personagem resolve correr e correr e logo comeรงa a ser seguido e em algum tempo, centenas e centenas de pessoas encontram nele o motivo de suas prรณprias vidas. Sรณ faltou combinar com o Forrest. Em um instante, sem nenhuma razรฃo aparente – aliรกs, a mesma falta de razรฃo que o fez principiar a corrida – ele para e vai fazer outra coisa, imergindo no cotidiano. E o vazio se instalou, mais uma vez, na alma da multidรฃo.
Voltando ao Aristรณteles: o Fim-Felicidade nรฃo passa pela fuga da dor e nem pelo encontro necessรกrio com ela, porque nรฃo hรก uma relaรงรฃo entre Felicidade e Sucesso, mas entre Felicidade e Bem Comum. Ou seja: em vez de estar acima, recebendo os raios brilhantes do sol antes dos outros, sozinho, mesmo que por um instante, a Felicidade aristotรฉlica รฉ estar ao lado de muitos, compartilhando o sol que, de resto, assim como o feijรฃo, sempre dรก pra mais um convidado e outro e outro. Basta reconhecรช-lo como merecedor daquilo que vocรช deseja para vocรช tambรฉm.
Epicuro, outro daqueles incrรญveis pensadores gregos, dizia que a Felicidade รฉ o prazer obtido pelo discernimento โ e ele pode implicar alguma dor, desde que isso signifique afastar dores maiores. Algo como suportar a picada da agulha da injeรงรฃo para se imunizar contra um vรญrus terrรญvel. Ou aceitar a broca do dentista e depois poder voltar a sorrir. Ou ter a paciรชncia de esperar, ou a determinaรงรฃo de estudar por longas horas, ou percorrer longas distรขncias para, enfim, ser recompensado pelo abraรงo querido de alguรฉm que tambรฉm se esforรงou para encontrรก-lo.
Isto รฉ: nรฃo parece haver uma incompatibilidade necessรกria entre dor e felicidade, mas entre felicidade e sucesso, que causa dor. Como diziam os antigos, aรญ estรก o busรญlis. Muitos querem o sucesso e acham que isso lhes trarรก felicidade. Para isso, aceitam qualquer negรณcio, por mais doloroso – do ponto de vista fรญsico ou moral – que seja. Muitas vezes tornam-se bem sucedidos. E descobrem que a felicidade que acompanha esse momento รฉ como um pedacinho de algodรฃo doce. Maravilhoso ao vรช-lo. Irresistรญvel antes de tรช-lo. Rapidamente delicioso quando consumido, tanto quanto insuficiente. Frustrante antes mesmo de ser esquecido. E o Fim รฉ o vazio da perda da inocรชncia de que um pedacinho de algodรฃo doce era tudo o que se queria e queย รฉ impossรญvel reiniciar a operaรงรฃo imediatamente. O segundo pedaรงo de algodรฃo doce รฉ somente a busca desesperada pelo sabor que nรฃo se repetirรก mais. E lรก vamos outra vez, correndo atrรกs de outro Forrest Gump, enquanto os textos de Aristรณteles e as mรกximas de Epicuro empalidecem nas prateleiras.
* Daniel Medeiros รฉ Doutor em Educaรงรฃo Histรณrica e professor no Curso Positivo.
danielmedeiros.articulista@gmail.com
@profdanielmedeiros
ย
**Artigos de opiniรฃo assinados nรฃo reproduzem, necessariamente, a opiniรฃo do Curso Positivo.