Daniel Medeiros*
Berkeley foi um pensador irlandรชs que viveu entre os sรฉculos XVII e XVIII. Ele afirmou que tudo o que existe, existe por causa da nossa percepรงรฃo. E tambรฉm que nรฃo hรก uma diferenรงa entre ideia e percepรงรฃo. Ou melhor: as ideias sรฃo o resultado das percepรงรตes. E quando percebo algo, nรฃo pode haver dรบvida quanto ร sua existรชncia.
Ou seja: para esse importante pensador, que influenciou Kant, Schopenhauer e Einstein, nรฃo hรก necessidade de assumirmos o mundo exterior para afirmar que o conhecemos. Conhecemos porque estรก na nossa mente, e nenhuma substรขncia material existe fora da percepรงรฃo que temos dela.
O principal objetivo desse imaterialismo era contornar uma das mais poderosas ferramentas de regulaรงรฃo da nossa atividade consciente, que รฉ o ceticismo. Os cรฉticos, desde o sรฉculo III a. C., desafia-nos a explicar nossas afirmaรงรตes sobre as coisas, fazendo o pensamento refinar-se em movimentos de justificaรงรฃo que foram fundamentais para o desenvolvimento das Ciรชncias, entendendo Ciรชncias como essa compreensรฃo do mundo fora de nรณs e de como ele opera. Ora, se nรฃo hรก um mundo material a ser afirmado, mas apenas a minha percepรงรฃo que povoa minha mente de ideias, logo, nรฃo hรก mais do que se duvidar ou questionar.
Esse monismo de Berkeley – ao contrรกrio do dualismo cartesiano, por exemplo, que divide as coisas em matรฉria e consciรชncia – pode ser expresso da seguinte maneira: eu percebo e por isso as coisas existem. Se mudam minhas percepรงรตes sobre algo, esse algo passa a ter a conformaรงรฃo dada por minha mudanรงa de percepรงรฃo. O conteรบdo de algo nunca pode ser indeterminado, e as ideias abstratas sรฃo impossรญveis. โSer รฉ ser percebidoโ, afirma ele, peremptoriamente.
ร lรณgico que nรฃo podemos derivar do imaterialismo de Berkeley uma relaรงรฃo necessรกria com aquela madrugada de 8 de setembro, em Brasรญlia, quando caminhoneiros se abraรงaram em prantos, com a notรญcia de que o presidente havia decretado o Estado de Sรญtio, isto รฉ, dado o golpe, como prometido a eles. Um desses senhores, com uma mรฃo segurando o celular para registrar o momento, e a outra limpando lรกgrimas abundantes, buscava descrever o que percebia: โA nossa luta, a nossa garra, valeu a pena. Fiquei sabendo agora que o nosso presidente resolveu agir e, a partir de agora, o Brasil estรก em Estado de Sรญtioโ. E mais lรกgrimas. Um momento comovente.
Por outro lado, como afirmar que esse momento nรฃo existiu da maneira como foi comemorado por aquele caminhoneiro? Como nรฃo acreditar naquelas palavras, naquela emoรงรฃo, resultado do que a rede de WhatsApp informou a ele? A mesma rede que construiu as convicรงรตes nas quais ele acredita, de que o presidente รฉ o verdadeiro democrata, honesto e capaz de conduzir o Brasil para algum lugar que deve ser muito bom, pois uniu aqueles senhores todos, tรฃo alegres e tรฃo convictos.
ร bem mais fรกcil – รณbvio atรฉ – dizer que essa realidade paralela nรฃo passou de um delรญrio, uma psicose coletiva, fruto da ignorรขncia e da manipulaรงรฃo dos desejos dessa gente ingente. Pode ser. Mas tambรฉm pode ser que Berkeley esteja certo e que a realidade nรฃo exista. Sรณ existem os caminhoneiros felizes com o Estado de Sรญtio decretado pelo presidente naquela madrugada inesquecรญvel.
*Daniel Medeiros รฉ doutor em Educaรงรฃo Histรณrica e professor no Curso Positivo.
daniemedeiros.articulista@gmail.com
@profdanielmedeiros
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**Artigos de opiniรฃo assinados nรฃo reproduzem, necessariamente, a opiniรฃo do Curso Positivo.