Daniel Medeiros*
No dicionário, independência quer dizer “estado, condição, caráter do que ou de quem goza de autonomia, de liberdade com relação a alguém ou algo”. Ser independente é não ser obrigado a se submeter a outro naquilo que considera ser de sua natureza. Uma pessoa independente reconhece o que deve considerar em conjunto e o que é de seu alvitre pessoal. Ela associa essa independência à sua própria identidade, já que, poder decidir é elemento constitutivo da personalidade. É o que se pode chamar de “eu sou”, ou seja, eu sou livre porque sou capaz de discernir entre meus direitos e minhas responsabilidades, o que é possível devido às minhas vontades e ao que é necessário ser mediado pelas vontades dos outros.
Desde sempre, a independência foi um tema que produziu interpretações diversas, principalmente nessa fronteira inevitável entre o interesse individual e o público (que é o direito individual dos outros); igualmente, na fronteira entre os interesses dos povos vizinhos e, historicamente, das colônias e sua metrópoles e dos povos invadidos durante as guerras e das dependências econômicas e cultural, incluindo até mesmo as interferências linguísticas, como a eterna discussão em torno de uma língua brasileira (tão africana, tão indígena, tão cheia de dialetos dos imigrantes do fim do XIX e início do XX) frente às regras gramaticais transplantadas por Portugal. Mas um ponto sempre foi comum em torno de todas essas questões e suas infindáveis matizes: ser independente implica viver com liberdade e ter autonomia para decidir, em um ambiente coletivo, a melhor forma de estar no mundo.
O limite dessa liberdade não é o outro, como diziam os iluministas, mas a condição dessa liberdade é o outro: “Minha liberdade começa quando começa a liberdade do outro”, esse deveria ser o ditado. Ou seja, quando falo em “autonomia para decidir” é sempre diante das opções iguais que balizam as ações dos tantos outros que nos rodeiam e, portanto, nunca uma decisão é livre e independente se esquece essa presença. Ao contrário, esse é, precisamente, o conceito de tirania. Tirano é quem age como um Robinson Crusoé na ilha deserta. Por isso teme as pegadas na areia da praia e pensa que se trata de um perigo, uma ameaça. A independência é a defesa de ser uma voz a ser ouvida entre vozes múltiplas e de existir não como um objeto da manipulação dos outros, mas um sujeito portador de direitos e de vontades que merecem ser escutadas e consideradas, junto com os outros e não antes ou depois. E nunca sozinho.
A alternativa à independência é a morte. Logo, a morte não faz parte do universo da liberdade e da convivência democrática, mas é, por definição, o seu contrário. É a linguagem do tirano, que, eliminando e submetendo – negando assim a independência – pode ser assim a única voz a ser ouvida. A morte não é o contrário da vida, mas de viver. E não somente do viver como estatuto biológico, mas social e político. Está aí a experiência dos campos de concentração, nos quais a desumanização tornava real o vaticínio bíblico: “E os vivos terão inveja dos mortos”.
Em um sábado, sete de setembro de 1822, às margens do riacho Ipiranga, logo após satisfazer as exigências da natureza, o jovem príncipe D. Pedro é surpreendido por cartas enviadas por sua esposa, a regente Dona Leolpodina, que traziam as últimas notícias das Cortes portuguesas, que, apesar de liberais, buscavam recolonizar o Brasil para salvar a economia do pequeno país ibérico. D. Pedro, inflamado pelas palavras da esposa – “os frutos estão maduros, é hora de colhê-los”- e pela arrogância das determinações lusitanas – disse, ali mesmo, diante da pequena comitiva, que seu lema para o país que adotara por circunstâncias, seria “independência ou morte”. Nada poderia ser mais claro. No hino da independência, cuja música é do próprio e talentoso governante, repete-se: “ou ficar a Pátria livre, ou morrer pelo Brasil”. Ou seja: morrer não era a solução. Era o fim da experiência da liberdade, o fim da possibilidade da independência. Nunca o que se desejava, mas o que se admitia em um ambiente onde não lograsse os direitos e as garantias de uma vida digna. Essa é a lição que a nossa História perdeu a oportunidade de internalizar, problematizando-a nas escolas e cultivando-a nos livros e nas praças. Não. Ficou a ideia de um uniforme que D. Pedro não usava. De uma espada que ele não desembainhou. De uma comitiva de militares que não o acompanhava. De uma mensagem de violência que ele não desejou. Nem proferiu.
Hoje presenciamos um governo que tornou a morte uma palavra da moda, um desejo repetido infatigavelmente como um mantra para seu rebanho de seguidores: “morte, morte, morte”. Uma coisa fica clara: quem fala em morte não trata de liberdade, nem autonomia, nem de independência. Quem fala em morte tem desejo da mordaça, da canga, da rédea curta, de obedecer a vontade do tirano, em um espetáculo tristonho que é um misto de Dia dos Finados e Quarta-feira de Cinzas. Em verde e amarelo.
*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
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@profdanielmedeiros
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