Daniel Medeiros*
O ideal do cidadรฃo maduro รฉ ter discernimento sobre as coisas. Discernir รฉ separar o joio do trigo, ser capaz de identificar o certo do errado, o pertinente do inadequado, o possรญvel do absurdo. Uma pessoa dotada desse discernimento รฉ mais confiรกvel e responsรกvel. Enfim, alguรฉm capaz de enfrentar os desafios do mundo dos adultos.
O que รฉ engraรงado รฉ como embarcamos com tamanho afinco nesse tipo deย encenaรงรฃo. Nos bastidores, longe do palco do faz de conta, hรก somente a consciรชncia que nรฃo รฉ capaz de determinar nada com certeza. O que somos nรฃo passa de um conjunto de passos em meio a probabilidades, insights e intuiรงรตes, que รฉ como chamamos os chutes que damos todos os dias em meio ao universo caรณtico que nos rodeia, para construirmos o que chamamos de vida.ย
“Vida normal”, gostamos de dizer, e fazemos isso sem um รบnico tom de ironia ou sarcasmo. ร sรฉrio o que falamos, como se houvesse uma medida padrรฃo dessa normalidade, como hรก um limite de altura nos viadutos ou de profundidade nas piscinas. Como se a volatilidade de uma sociedade na qual milhรตes de pessoas interagem constantemente nรฃo tecesse, todo dia, um imenso tapete de Penรฉlope sรณ para desfazรช-lo todas as noites, sem guardar notas sobre os nรณs e os pontos que foram dados.
Dizemos โvida normalโ e nos escondemos atrรกs dessa expressรฃo, confiantes de que ninguรฉm repararรก no tremor das nossas mรฃos, pรกlpebras, lรกbios. Hรก vรกrias explicaรงรตes para cada um desses tremores e hรก sempre a chance de que a distraรงรฃo geral releve nossos desconcertos diante da existรชncia inominรกvel, do real lacaniano que nos atravessa em desafio ao nosso esforรงo inรบtil de reconhecimento e classificaรงรฃo.
Discernimento, quando muito – o que nรฃo รฉ pouco -, รฉ dosar nossas neuroses com muita reflexรฃo e respiraรงรฃo compassada. ร buscar ouvidos capazes de alguma atenรงรฃo e organizar as falas com o mรกximo de abertura aos sons que vem de dentro. E redefinir o โquem somosโ uma ou duas vezes por dia, ao menos. Afinal, quando dormimos – ou quando tentamos dormir – muito do que existimos na jornada diurna jรก ficou pelo caminho, como pequenos mortos sem sepultura. Mas tambรฉm muitos nascimentos ocorreram, muitos jovens entraram na fase adulta, muitos velhos comeรงaram a dar o seu adeus. Como as pedrinhas do caleidoscรณpio, formando imagens a cada movimento do corpo, e cada imagem sendo tรฃo real quanto as pedrinhas que a compรตem.
O discernimento serve para as coisas. A Ciรชncia ganhou muito com ele, isso รฉ inegรกvel. Mas as pessoas nรฃo cabem bem na lente objetiva da racionalidade analรญtica. Somos borrรตes, garatujas em constante reelaboraรงรฃo, sem um modelo definitivo e sem um ponto final capaz de ser expresso por um โestรก prontoโ. Buscar uma vida equilibrada implica, o tempo todo, em uma negociaรงรฃo com esse “isso” que nos compรตe, que nรฃo tem nome nem forma mas que age e atravessa nosso dia a dia com fome e com sede, sem dizer com clareza o que quer comer e o que quer beber.ย
Curioso quando encontramos pessoas que se dizem realizadas, que viveram uma vida plena e que concretizaram tudo o que planejaram. Encenamos essas falas e embarcamos nelas com uma fรฉ que รฉ comovente. Nas redes sociais, esses testemunhos provocam tremores e ranger de dentes, um verdadeiro tsunami de inveja e ressentimento. Tudo miragem. Real. Mas miragem.
Discernimento รฉ como a brincadeira sรฉria, quando fingimos que somos capazes de controlar nossos humores pelo tempo que quisermos. E que termina sempre quandoย explodimos em risos frouxos e rostos congestionados.ย
*Daniel Medeiros รฉ doutor em Educaรงรฃo Histรณrica e professor no Curso Positivo.
daniemedeiros.articulista@gmail.com
@profdanielmedeiros
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**Artigos de opiniรฃo assinados nรฃo reproduzem, necessariamente, a opiniรฃo do Curso Positivo.