O barulho em torno do criado-mudo

Daniel Medeiros*

Se vocรช entrar agora no site da Amazon e escrever (ou digitar) โ€œcriado-mudoโ€, vai aparecer uma resposta automรกtica dizendo que vocรช nรฃo deve usar essa expressรฃo porque ela รฉ racista. Se vocรช รฉ uma pessoa que repudia prรกticas racistas de qualquer natureza, certamente ficarรก desconcertada com essa imputaรงรฃo e descobrirรก rapidamente que o โ€œcorretoโ€ รฉ escrever mesa de cabeceira. E sรณ entรฃo aparecerรฃo diversas ofertas para a sua livre escolha. E melhor, com a consciรชncia limpa: vocรช nรฃo รฉ racista.

ร€ despeito dessa contribuiรงรฃo tรฃo edificante do maior site de compras do mundo, a discriminaรงรฃo e a violรชncia contra negros nรฃo param de crescer. O mapa da violรชncia รฉ um exemplo claro: ser jovem e negro no Brasil faz com que se tenha 17 vezes mais chances de ser morto pela polรญcia do que se a pessoa for jovem e branca. Mesmo que todo mundo passe a dizer โ€œmesa de cabeceiraโ€ trรชs vezes ao dia, em voz alta, na praรงa.

Mas, o mais curioso nรฃo รฉ o empenho em ensinar como falar coisas prosaicas sem ser racista: รฉ que a associaรงรฃo da expressรฃo criado-mudo com a escravidรฃo รฉ simplesmente falsa. Nรฃo hรก nenhuma relaรงรฃo entre escravos que serviam seus donos no Brasil do sรฉculo XVIII, XIX, com o movelzinho que serve para colocar o livro de autoajuda que vocรช lรช antes de dormir e os remรฉdios para dor de cabeรงa que vocรช toma assim que acorda. ร‰ como o verbo denegrir, outro enjeitado termo โ€œracistaโ€ que รฉ motivo de cancelamentos massivos nas redes sociais dos incautos que desavisadamente o praticam. Termos que ficam com a reputaรงรฃo manchada para sempre. Ou seja, sรฃo denegridos.

Mark Lilla, em famoso artigo publicado no The New York Times, em novembro de 2016, chamado O fim da identidade Liberal, no qual anteviu a derrota de Hilary Clinton para Donald Trump, jรก destacava que a onda do politicamente correto atingia pessoas que nunca alimentaram qualquer comportamento discriminatรณrio e que o mal-estar provocado por essas acusaรงรตes sรณ serviu para afastar esses grupos moderados do campo democrata, enfraquecendo as chances de um governo empenhado nas causas reais e urgentes para o paรญs, como a desigualdade social e as polรญticas ambientais. Afirmava o autor: โ€œA polรญtica de identidade estรก produzindo uma geraรงรฃo de liberais e progressistas narcisistas e inconscientes das condiรงรตes existentes fora dos seus grupos autodefinidos, e indiferentes ร  tarefa de atingir os estadunidenses em todos os รขmbitos da vida.โ€

O importante a destacar รฉ que fazer a crรญtica dos excessos do controle terminolรณgico identitรกrio nรฃo implica, em absoluto, deixar de reconhecer o problema da marginalizaรงรฃo de muitas dessas minorias. O que tem acontecido, porรฉm, รฉ que fazer a crรญtica tem se tornado um problema grave, na medida em que hรก uma rรกpida obstruรงรฃo e um movimento em pinรงa de acusaรงรฃo e cancelamento que impedem que a crรญtica seja desenvolvida em seu campo natural, o do debate pรบblico, marcado pela liberdade de expressรฃo e pela civilidade da refutaรงรฃo fundamentada. O caso da escritora J.K. Rowling รฉ emblemรกtico. Aliรกs, lembro que ela grafou seu nome com duas consoantes para escapar da estigmatizaรงรฃo do autor feminino e buscar um lugar em um universo no qual o machismo ainda รฉ prevalente. Pois agora, a criadora do universo de Harry Potter foi desconvidada do especial de vinte anos do primeiro filme da sรฉrie, para evitar constrangimentos, em face de uma declaraรงรฃo que ela fez e que foi considerada politicamente incorreta. Mas essa รฉ sรณ uma gota no oceano de posturas correcionais que tรชm gerado pรขnico nos mais diversos produtores de conteรบdo e, muitas vezes esse pรขnico se transforma em ressentimento e esse ressentimento acaba alimentando os oportunistas de plantรฃo que ganham visibilidade defendendo justamente a discriminaรงรฃo que essas posturas tentam combater. ร‰ o paradoxo do politicamente correto servindo de lenha para a fogueira dos que defendem a perpetuaรงรฃo da desigualdade. Prova de que o clichรช โ€œde boas intenรงรตes o inferno estรก cheioโ€ estรก mais atual do que nunca.

O que deve ser ressaltado, como lembra a pensadora Hannah Arendt, รฉ que nรฃo existem direitos humanos sem polรญticas protetivas dos direitos humanos. Sรฃo essas que constituem a garantia necessรกria a uma vida digna e elas sรณ podem ser elaboradas e aplicadas por governos comprometidos com o bem-estar geral da populaรงรฃo, fundamentados em regras de aplicaรงรฃo geral, reconhecendo a isonomia corretiva necessรกria para compensar as profundas desigualdades ocorridas ao longo da nossa histรณria sem perder, porรฉm, o horizonte de um projeto de sociedade mรบltipla em identidades e igual em direitos e deveres. Fraturar essa ideia de igualdade cidadรฃ em nome do reconhecimento multifacetado das identidades pode funcionar, ao contrรกrio do que se parece desejar, empurrando para os grupos conservadores a ideia de Pรกtria e de Unidade, de Sociedade e de Repรบblica, (conquistas iluministas, nunca esqueรงamos), e fortalecer justamente aqueles que mais se distanciam da busca por respeito e reconhecimento de direitos para todos. Como lembrou Emmanuel Macron, em entrevista para a revista Elle de primeiro de julho de 2021: โ€œEstou do lado universalista. Nรฃo me reconheรงo em uma luta que remete a cada um a sua identidade ou seu particularismo.”

O criado-mudo nรฃo รฉ uma expressรฃo racista. Isso รฉ falso. Mesmo que fosse, sua manifestaรงรฃo nรฃo deveria ser repudiada e criminalizada, mas contextualizada e pedagogizada, pois quem desconhece nรฃo comete um crime. Pelo contrรกrio, torna-se grato por aprender sem ser acusado. Ao ser acusado, sente-se injustiรงado e ressente-se. Ressentimentos sรฃo peรงas-chave da polรญtica de divisรฃo que vigora nos nossos tempos. Por isso, deve ser combatida. Devemos buscar resgatar campos comuns de aproximaรงรฃo, suspendendo o dedo acusador e substituindo-o pela mรฃo estendida ao bom diรกlogo e ao acordo em torno de uma pauta de direitos para todos e de resgate dos mais vulnerรกveis. O resto รฉ sรณ comida para lobos.

*Daniel Medeiros รฉ doutor em Educaรงรฃo Histรณrica e professor no Curso Positivo.
daniemedeiros.articulista@gmail.com
@profdanielmedeiros

ย 

**Artigos de opiniรฃo assinados nรฃo reproduzem, necessariamente, a opiniรฃo do Curso Positivo.

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