Daniel Medeiros*
Hรก comigo uma dรบvida que me persegue, que me atormenta, e agora mesmo penso nela, depois da chegada da Maninha, do Ronaldo, que todo dia vรชm ver se eu ainda nรฃo desapareci. Aqui, com o cachorro Fubรก, que me acompanha desde que me lembro que fui feliz, imagino-me – engraรงado -, imagino-me cรฃo. E fico com a pequena e atรฉ dolorosa reticรชncia: como seria, depois da morte, minha vida de cรฃo? Ascenderia aos cรฉus, penso, e se nรฃo acredito, lamento-me, pois noto os pequenos e lacrimejantes olhos de Fubรก, que tanto me acompanhou, acalentou-me em meus mil momentos de angรบstia, e sinto que รฉ impossรญvel crer que somente nรณs, tรฃo incompetentes nessa coisa de ser bom, tenhamos almas.
Pareรงo piegas, nรฃo? A verdade, porรฉm, รฉ que nรฃo me sinto absolutamente assim, embora me questione: como posso me preocupar com essas coisas, enquanto no mundo aรญ fora a vida estรก tรฃo difรญcil, com tanta gente com os olhos arregalados de medo das pessoas com os olhos carregados de รณdio?
ร que nunca vi Fubรก em nenhum momento de fรบria e, por isso, creio que possa existir um equรญvoco: como podem os animais nรฃo possuรญrem alma? Maninha me acha um pouco abatido e ralha comigo: โisso lรก sรฃo ideias, pai? Tanta coisa com que gastar o tempo e fica lรก pensando no que vai acontecer com o cachorro?โ.
ร que Fubรก jรก passou de uma dezena, sem nem sentir, porque os cรฃes nรฃo tรชm o que chamamos de sentimento; ou melhor, os cรฃes sรณ tรชm sentimentos, e acredito que viver, para eles, รฉ uma รบnica aรงรฃo, algo contรญnuo. Quando me ausento, Fubรก fica desconsolado, e quando volto – quinze minutos depois – รฉ como se eu tivesse ressuscitado. Para os cรฃes, a vida รฉ estar ao lado dos que ama e a morte รฉ essa desapariรงรฃo. Como podem acreditar que nรณs, que nรฃo compreendemos essa verdade tรฃo simples, somos os รบnicos que festejarรฃo nos cรฉus, reunidos,ย para sempre?
Ronaldo olha para mim com ar de piedade – logo ele, cujo amor por minha filha jรก foi perdido sem que eles sequer tenham dado pela sua falta – e tenta me distrair, falando das mazelas do mundo lรก fora e xingando โos que nรฃo tรชm consciรชncia da situaรงรฃoโ. Ronaldo fica nervoso e coisas profundas que o amarguram como espinhos voltados para dentro ameaรงam vir ร tona e Maninha exige que ele pare, fala da minha idade e de que eu nรฃo preciso mais me importunar com as coisas do mundo. Ronaldo ainda bufa mais um pouco, e chama este e aquele disto e daquilo. Nessas horas, tapo as orelhas de Fubรก, que sempre foi um bichinho manso e caseiro, nunca o vi perder a compostura com nada, mesmo quando Maninha esquece de colocar รกgua para ele ou de abrir a porta de vidro para a varanda e ele fica se contorcendo para nรฃo fazer xixi na sala, porque sabe o trabalho que tenho para limpar.
Eu nรฃo ligo – digo pra Maninha. Deixa ele falar, as coisas do mundo sรฃo assim nรฃo รฉ de hoje. Falo isso e minha voz trai a falta de convicรงรฃo, porque sei que esse mundo vem ampliando rapidamente seus desertos, onde as miragens atraem as caravanas para consumi-las, como as sereias faziam sentadas sobre as rochas nas histรณrias de Homero.
Quase agradeรงo por jรก ter amanhecido tantas manhรฃs iguais e agradeรงo especialmente porย ainda me lembrarย das manhรฃs que foram diferentes. Sei que nรฃo hรก mais tantas pela frente. Nรฃo as iguais, que nunca tiveram nenhuma importรขncia: a vida รฉ a sรญntese de poucas tardes e poucas madrugadas. Mas tudo bem, nรฃo tenho medo desse mistรฉrio e nem desse encontro. Sรณ uma pergunta me atormenta: por que nรฃo deram uma alma para o Fubรก? Fecho os olhos, reรบno o mรกximo de concentraรงรฃo possรญvel e peรงo, sabe-se lรก pra quem, mas apenas para nรฃo perder a oportunidade que a incerteza proporciona: โDai-me, imploro, uma alminha pro meu Fubรก, pois ele รฉ a รบnica coisa necessรกria que eu tenho nesse paรญs – e quem sabe – desse paรญs.
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* Daniel Medeiros รฉ doutor em Educaรงรฃo Histรณrica e professor no Curso Positivo.
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