Sobre abortar

Daniel Medeiros*

 

Basta olhar no dicionรกrio o verbo abortar e os significados surgem: interromper, nรฃo vingar, nรฃo se desenvolver. Abortamos os planos para as fรฉrias; o general abortou o avanรงo das tropas no front; o projeto da expansรฃo da empresa foi abortado. A mulher abortou a gravidez.

Firmar um juรญzo de valor sobre o verbo abortar sem levar em consideraรงรฃo a transitividade que o constitui รฉ sempre, no mรญnimo, uma precipitaรงรฃo. Se houve aborto, houve uma circunstรขncia: as chuvas, para os planos das fรฉrias; a falta de armas, no avanรงo das tropas; uma crise econรดmica, na expansรฃo das empresas. No caso da mulher, sรณ ela sabe as circunstรขncias de uma decisรฃo dessa natureza.ย 

A lei estabelece algumas das muitas possibilidades que levariam uma mulher a decidir pelo aborto: a violaรงรฃo da sua dignidade, no caso do estupro; a ameaรงa da sua existรชncia, no caso do risco da gravidez para a sua vida; a ausรชncia de vida ou de possibilidade de vida do feto, no caso da anencefalia.

Hรก, porรฉm, tantas outras possibilidades. Mas sรณ as mulheres podem dizer, diante do peso e da forรงa das circunstรขncias, se รฉ caso de interromper, nรฃo desenvolver, nรฃo deixar vingar o feto em seu ventre.

Toda interrupรงรฃo tem um custo: do lazer, da vitรณria, do lucro, de uma possรญvel nova vida. Por isso, toda decisรฃo implica uma perda necessรกria. Resta saber se a perda pode ser assumida, diante das circunstรขncias da decisรฃo tomada. E decisรตes podem ser acertadas ou erradas. O cรกlculo do acerto e do erro รฉ medido pelas consequรชncias diferentes das imaginadas no momento da decisรฃo. Aqui reside o argumento mais forte dos que rejeitam o aborto do feto: a irreversibilidade do resultado. Mais uma vez, sรณ ร  mulher que aborta cabe a responsabilidade por essa medida e por carregar essa histรณria em sua vida. Ninguรฉm รฉ afetado por isso na dimensรฃo em que a mulher รฉ. Por isso, nenhum outro sentimento se sobrepรตe ao de quem decide essa interrupรงรฃo e ninguรฉm pode almejar ter mais importรขncia ou querer ter protagonismo maior nessa narrativa.

“Mas, trata-se de uma vida”, retrucam os que se interpรตem ร  ideia de deixar para a mulher a decisรฃo de interromper a gravidez, sem que isso seja ilegal, perigoso ou vexatรณrio para ela.

Esse รฉ o nรณ que precisa, urgentemente, ser desatado: quando a vida torna-se um bem juridicamente protegido? Quando รฉ possรญvel dizer โ€œagressรฃo ร  vida, ameaรงa ร  vida, proteรงรฃo da vidaโ€? Quando hรก uma vida assim considerada para efeito de tutela do Estado?ย 

Toda perda implica uma responsabilidade: o pai que cancela as fรฉrias precisa se explicar aos filhos; o general precisa justificar ao Alto Comando; o empresรกrio, aos seus sรณcios. A mulher, diante da perda de uma outra vidaโ€ฆ Mas aรญ รฉ que estรก a questรฃo: trata-se de uma vida cuja perda รฉ imputรกvel?ย 

Para essa delicada pergunta hรก uma resposta religiosa e outra laica: a primeira provรฉm da tradiรงรฃo e a segunda, da Ciรชncia. Uma considera que hรก vida desde o momento da concepรงรฃo; outra entende que sรณ hรก individuaรงรฃo, portanto, vida tutelรกvel, com o desenvolvimento do sistema nervoso, cujo primeiro sinal de atividade se dรก por volta da dรฉcima terceira semana de gravidez. A vida, para efeito da proteรงรฃo do Estado, muda em um caso e em outro caso. O aborto, para um caso รฉ um crime. Para o outro, nรฃo. Essa รฉ a questรฃo central. Ou nรฃo, se lembrarmos que o Estado brasileiro รฉ laico.

Jรก รฉ pacรญfico para a lei e para os tribunais que a morte legal, ou seja, aquela na qual cessa a proteรงรฃo do Estado sobre a pessoa – podendo, por exemplo, retirar seus รณrgรฃos ou enterrar ou queimar seu corpo, alรฉm de dispor de seus bens – dรก-se com a completa e irreversรญvel parada de todas as funรงรตes do cรฉrebro. Ou seja, o parรขmetro para o fim da vida รฉ o tรฉrmino das atividades cerebrais. Vida รฉ vida cerebral, diz a Ciรชncia. Daรญ o Supremo Tribunal Federal ter decidido que, no caso de anencรฉfalo, a interrupรงรฃo da gravidez รฉ legal. Como disse, na ocasiรฃo, o ministro Marco Aurรฉlio, relator do caso: “Anencefalia e vida sรฃo termos antitรฉticosโ€. Ou seja, sem atividade cerebral, sem vida.

Cabe aos legisladores ou aos guardiรตes da Constituiรงรฃo a tarefa dessa definiรงรฃo sobre o comeรงo da proteรงรฃo legal da vida para descriminalizar ou nรฃo o aborto de feto, devolvendo para as mulheres, sem medo de puniรงรฃo, a decisรฃo que sempre lhes coube primariamente.ย 

*Daniel Medeiros รฉ doutor em Educaรงรฃo Histรณrica e professor de Humanidades no Curso Positivo.
daniemedeiros.articulista@gmail.com
@profdanielmedeiros

**Artigos de opiniรฃo assinados nรฃo reproduzem, necessariamente, a opiniรฃo do Curso Positivo.

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